Falta de vacinas para a covid-19 reaviva o debate sobre suspender as patentes durante a pandemia

Organizações de trabalhadores da Saúde afirmam que, se for liberada, a produção pode passar de 12 milhões a 60 milhões de doses por dia. Referência quando debate era sobre a Aids, Brasil é o único entre os países de renda média que é contra a quebra da patente dos imunizantes

Uma enfermeira injeta uma vacina contra a covid em um idoso no Raman Hospital de Bangalore (Índia).JAGADEESH NV (EFE)
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As vozes que pedem a eliminação das patentes dos produtos sanitários crescem diante do lento avanço da vacinação contra a covid-19 no primeiro trimestre do ano. O debate não é novo, mas ganha força na pandemia. Organizações não governamentais e da sociedade civil afirmam que a produção pode acelerar se os laboratórios liberassem as patentes, enquanto a indústria farmacêutica defende que para gerar mais e melhores medicamentos não há nada como a concorrência entre empresas que desenvolvem moléculas inovadoras.

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A Associação ao Acesso Justo aos Medicamentos (AAJM), que agrupa profissionais da Saúde e membros da sociedade civil, é uma das que pedem uma mudança no sistema de produção e comercialização dos fármacos que, segundo dizem, impede que cheguem a todos os que precisam. Na apresentação da revista da organização no final de março, o membro da equipe editorial da publicação Fernando Lamata, antigo funcionário de alto escalão do Ministério da Saúde e ex-secretário de Saúde de Castela-La Mancha, expôs como argumento que “se atualmente são produzidas 12 milhões de doses de vacinas por dia, sem patentes é possível chegar aos 60 milhões”. “Há pessoas que estão morrendo, e existem alternativas”, afirmou.

O presidente autonômico (governador regional) da Comunidade Valenciana da Espanha, Ximo Puig, entrou no assunto na sexta-feira ao afirmar que enviou uma carta ao Comitê Europeu de Regiões para revisar o atual sistema de patentes. “É preciso abrir esse debate”, disse à rádio Cadena SER, e procurar “a suspensão temporária de patentes para tentar e prevenir a covid, ou habilitar uma terceira via entre a independência total dos laboratórios e a insegurança jurídica, habilitando fórmulas de compensação”. Esta terceira opção consistiria em oferecer fórmulas de compensação às empresas farmacêuticas afetadas “se a opção for o marco jurídico que permite, diante de condições excepcionais, outorgar a outras empresas as chamadas licenças obrigatórias, em paralelo às patentes”, diz a carta.

O sindicato patronal dos laboratórios na Espanha, o Farmaindustria, refuta essa tese. “As empresas desenvolvedoras de vacinas são as primeiras interessadas em fornecer a maior quantidade possível no menor tempo possível, mesmo que só por uma questão de concorrência. Por outro lado, há pouquíssimas fábricas no planeta capacitadas para fabricá-las. Apenas uma dezena de empresas farmacêuticas no mundo se dedicam a desenvolver vacinas. Por isso as companhias fecharam acordos com as que têm essa capacidade, incluindo competidoras e de países de diferentes regiões do mundo, como a Índia, China e África do Sul”, afirma um porta-voz. Por exemplo, um terço do medicamento da AstraZeneca deve ser produzido no Serum Institute indiano, basicamente para enviá-lo aos países pobres, mas a UE está inspecionando a fábrica, que é o requisito prévio para que possa exportar também à Europa. “Mesmo que as patentes sejam suspensas não há mais locais onde produzi-las”, acrescenta a fonte.

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O médico Ramón Gálvez, também da comissão editorial da revista da AAJM, lembrou que “a chamada de atenção aos problemas de acesso veio do tratamento à hepatite C” em 2016, quando os 60.000 euros (402.000 reais) por paciente fizeram com que sua distribuição atrasasse até que se chegou a um acordo que, na prática, diminuiu o valor a 10.000 euros (67.000 reais). Até então, disse Gálvez, a falta de acesso pelo custo havia afetado países pobres, com casos tão famosos como o dos antivirais ao HIV.

Vanessa López, diretora da organização Saúde como Direito, criticou que os países ricos estejam monopolizando as vacinas produzidas. Por exemplo, a União Europeia reservou medicamentos suficientes para vacinar mais do que o dobro de sua população. “Enquanto nos países ricos uma vacina é aplicada a cada 10 segundos, nos pobres apenas uma em cada 10 pessoas irá recebê-la neste ano”, disse López. “A estratégia Covax”, promovida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a Coalizão para a Promoção de Inovações em prol da Preparação contra Epidemias (CEPI), e a Aliança Global para as Vacinas (Gavi) para fornecer vacinas aos países menos desenvolvidos, mesmo sendo uma boa iniciativa, “não é suficiente”, acrescentou, já que não se consegue com que os pobres tenham acesso aos medicamentos no mesmo ritmo dos ricos.

Razão de justiça

Para a associação, há outro modelo possível que a diretora da Saúde como Direito resumiu em “que os Estados entrem em acordo para potencializar a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos, e reservem para si a capacidade de colocar o preço”. Isso acabaria com a situação atual, em que as primeiras fases da pesquisa foram feitas em instituições públicas, mas a partir daí, quando foi visto que o medicamento era promissor, as entidades montam uma pequena empresa para seu desenvolvimento que, quando precisa crescer, é comprada por uma das grandes do setor”, disse Gálvez. “A partir daí não sabemos quais contas fazem porque o processo não é transparente, mas acabam colocando um preço exorbitante”, concluiu. Por exemplo, a vacina da AstraZeneca, que a empresa oferece a preço de custo, é vendida a três euros (20 reais); a da Pfizer, a 17 euros (115 reais).

López afirma que se justifica que os governos tomem decisões sobre os preços dos medicamentos pelo papel que o financiamento público tem nas primeiras etapas das pesquisas. Por exemplo, a Médicos sem Fronteiras (MSF) calcula que foram injetados 10 bilhões de euros (67 bilhões de reais) para incentivar os trabalhos sobre a covid-19, e provavelmente essa quantidade é maior, diz López. O membro da Associação de Economistas da Saúde Jaime Espín, membro do Comitê de Especialistas em Políticas Farmacêuticas da Organização Panamericana da Saúde, admite que, ao contrário do que acontece habitualmente, desta vez a pesquisa dos laboratórios recebeu um importantíssimo impulso com fundos públicos. “Por que, então, os direitos de propriedade intelectual não são compartilhados?”, pergunta.

A Farmaindustria defende que “a proteção industrial através das patentes é crítica para garantir que no futuro próximo tenhamos novos medicamentos”. “Os direitos de propriedade garantem que as empresas farmacêuticas se lancem à incerta corrida de pesquisar medicamentos, que significa em média dez anos, grandes custos (2,5 bilhões de euros) e, principalmente, alto risco (de cada 10.000 compostos analisados apenas um chegará um dia a ser um medicamento disponível)”.

A ex-eurodeputada socialista Soledad Cabezón, também na AAJM, diz que o argumento da indústria de que se não existir a proteção das patentes deixará de investir em novos medicamentos é falso. “Já existem muitas áreas nas quais não se trabalha porque não interessam, como os antibióticos”, afirma. O mesmo acontece com as doenças raras e outros campos, em que são necessários estímulos extraordinários para que novos tratamentos sejam estudados.

A Organização Mundial do Comércio (OMC) tem desde outubro do ano passado em cima da mesa uma proposta da África do Sul e da Índia, dois países com capacidade para fabricar vacinas, para que os produtos desenvolvidos ao coronavírus não estejam sujeitos à patente. “A UE há meses obstaculiza esse debate e se opõe à essa proposição”, criticou López. Lamata afirmou que até agora as conversas foram informais e não passaram do primeiro nível de decisão, o da comissão das ADPIC (Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual). O ex-secretário socialista disse que a nova diretora da OMC, Ngozi Okonjo-Iweala, se manifestou favorável a que o debate continue. “Por enquanto o que foi oferecido é que existam mais licenças voluntárias [que a indústria permita a outros fabricantes fazer o produto] e que aumentem as doações à Covax”.

Espín diz que a própria OMC prevê que um país possa decidir, diante de uma crise sanitária, ignorar a patente de um medicamento e fabricá-lo, mas diz que essas ações são complexas, e precisam de tempo e muita negociação. Uma das pouquíssimas vezes que aconteceu, quando o Brasil do presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu fabricar seus próprios antirretrovirais, foi após um duro embate com os Estados Unidos ―um movimento iniciado ainda no fim do Governo Fernando Henrique Cardoso, quando foi anunciada a quebra da patente de um medicamento contra a AIDS da Roche. Hoje, o país sul-americano é o único entre os países de renda média que é contra a quebra da patente das vacinas da covid-19. O vazamento dos documentos do Wikileaks mostrou que em outros casos, como o da Nicarágua, Washington parou a iniciativa.

Espín acha que há outras opções, como assinar contratos em que se estipule que se o fornecedor não pode entregar os medicamentos acertados, o Governo afetado pode utilizar os direitos de propriedade intelectual para conseguir o que falta. Mas admite que é difícil. “Isso não é um carro que se não o entregarem a tempo você vai à concorrência; aqui não há para onde ir, ainda que eu não saiba o que custaria adaptar fábricas de outros laboratórios para fabricar vacinas.” Também, diante das “queixas constantes” pelo sistema regulatório dos medicamentos, que é “um dos mercados que mais sofrem intervenções”, propõe alternativas como o preço regulamentado por valor, ou seja, pagar em função do benefício à saúde conseguido. Ele acha que o mais provável é que as ameaças de suspender a propriedade intelectual terminem em uma queda de preços.

A Farmaindustria conclui: “Mais do que um problema de produção, que se circunscreve a estas primeiras etapas e que será sanado em breve, estamos diante de um desafio de distribuição. Segundo os números de produção previstos para 2021, superaremos com folga os 10 bilhões de doses necessárias para conquistar em todo o mundo a chamada imunidade de grupo ou coletiva. Haverá, portanto, vacinas para todos”.

As organizações partidárias de eliminar as patentes começaram a reunir assinaturas entre os parlamentares europeus. Dos 705 da Câmara, 270 já assinaram, dos quais 30 são espanhóis, disse López. “É preciso notar que a postura europeia não é tão uniformemente contrária”, acrescentou.

EUA avaliam uma liberação temporária

A Casa Branca avalia uma possível liberação temporária das patentes das vacinas contra o coronavírus das multinacionais Pfizer-BioNTech, Moderna e Johnson&Johnson, em resposta à pressão das nações em desenvolvimento – com o apoio de vários legisladores democratas – o que permitiria avançar na imunização global, segundo informa a rede CNBC. A primeira resposta das farmacêuticas foi de repúdio total.

No começo de março, os países da Organização Mundial do Comércio (OMC), entre os quais estavam os Estados Unidos, recusaram a proposta de liberar essas patentes das vacinas contra a covid-19. A Administração de Joe Biden, entretanto, pretende mudar de postura. A iniciativa chegou à Casa Branca pelas mãos da presidenta da Câmara de Representantes, a democrata Nancy Pelosi, que enviou uma carta ao presidente em que pedia que reavaliasse a situação. De acordo com o que a CNBC revelou, em 22 de março ocorreu um encontro com os legisladores para debater sobre o problema, mas não se chegou a um acordo.

A África do Sul e a Índia foram os principais países que apresentaram à OMC a proposta de liberar as patentes de vacinas enquanto a pandemia durar, com o objetivo de “evitar barreiras de acesso”. Mas as multinacionais farmacêuticas se posicionam “fortemente contra renunciar às suas patentes”, segundo a CNBC, já que consideram que pode representar um obstáculo “na inovação para lutar contra futuras doenças”. A cada dia crescem as críticas pelo fato de que os EUA e alguns países ricos detêm os direitos e o fornecimento das vacinas enquanto muitas outras nações lutam e se esforçam para vacinar suas populações sem consegui-lo. / YOLANDA MONGE

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