Rio volta à boemia, com coronavírus e sem máscara
Permissão para abertura de bares gera aglomerações na zona sul, a parte mais nobre da capital fluminense e onde estão bairros como Leblon, Copacabana e Botafogo
Sextou no Rio de Janeiro, pero no mucho. Foi preciso uma chuva para arrefecer a vontade dos cariocas de se encontrarem —e se arriscarem— nos bares na primeira sexta-feira após a liberação da abertura dos estabelecimentos alimentícios na cidade. Na última quinta-feira, sem uma gota de água à vista, e um dia após a medida do prefeito Marcelo Crivella (Republicanos), o que se viu nas ruas do boêmio Leblon foi bastante distinto: dezenas de pessoas se aglomeraram em rodas na frente de bares, sem máscaras ou qualquer restrição de distanciamento social. As cenas, que viralizaram em vídeos nas redes sociais, levantaram o alerta para o que a medida, com casos de covid-19 ainda em plena ascensão, pode causar.
Nesta sexta-feira, a grande maioria dos principais pontos de boemia da nobre zona sul carioca seguiam quase vazios. Alguns poucos bares mais tradicionais de Copacabana, Botafogo e Leblon até conseguiram ocupar boa parte de suas mesas, disponibilizadas em menor número no espaço interno dos estabelecimentos para respeitar as normas de distância e ocupação determinadas pela prefeitura. “Cada funcionário ganha três máscaras, que devem ser trocadas a cada três horas”, explica o garçom Francisco, que trabalha no bar Aurora, de Botafogo. “Aqui não vai ter aglomeração. Se quiserem, que busquem outro lugar. Diminuímos a quantidade de mesas, damos álcool em gel e preparamos uma cartilha para explicar para os clientes os cuidados que devemos tomar”, acrescenta o gerente João. “O movimento foi baixo ontem e hoje. Acho que ainda vai demorar para retomar o que era antes. Mas ainda bem que reabrimos, caso contrário fecharíamos de vez”, complementa ele, apontando para a complexidade da longa quarentena.
Do outro lado calçada, no bar Cumpadres, o gerente Sidney explica que dos 37 garçons que trabalhavam ali antes da pandemia, restaram apenas 12. Quase todas as mesas do local, popular na região, estavam ocupadas nesta sexta e ele espera voltar a contratar em breve. “Não aguentava mais ficar em casa. A gente precisa trabalhar. Como eu venho de moto, não corro o risco de me contagiar”, afirma o garçom Felipe.
A aglomeração registrada no Leblon um dia antes aconteceu na praça Cazuza, em frente ao Boteco Boa Praça. Nesta sexta, seguranças controlavam a entrada de pessoas com pulseiras, álcool em gel e medição de temperatura. As mesas estavam a uma distância considerável uma da outra e todos os funcionários utilizavam máscara e faceshield —um escudo de material acrílico que cobre toda a face. Uma grade de contenção em volta do bar delimitava a fronteira com a praça. “A maior parte das pessoas estavam fora, na calçada, comprando cerveja numa banca. Não eram clientes nossos”, justifica Thiago Rodrigues, que ajuda os donos a gerir o local. Ele garante que os protocolos de segurança foram seguidos no dia anterior. “A gente se preocupa com a saúde, mas precisamos trabalhar. Aos poucos a gente vai retomando, tá tranquilo”, afirmou um garçom do local.
Além da reabertura de bares, lanchonetes e restaurantes na cidade, Crivella também autorizou a partir de 1 julho a reativação de estabelecimentos como academias e salões de beleza. E anunciou regras de funcionamento. Entre elas está o distanciamento de dois metros entre as mesas, a obrigatoriedade no uso de máscaras de funcionários e clientes (que só podem retirá-las no momento da refeição), o limite de ocupação de 50% do espaço interno e funcionamento até 23h. De acordo com o jornal O Globo, o sindicato de bares e restaurantes, que representa 10.000 estabelecimentos na cidade, se reuniu virtualmente nesta sexta, após a repercussão das imagens das aglomerações no Leblon, e garantiu que os locais vão passar de “denunciados” a “denunciantes”. A prefeitura também reagiu e enviou nesta sexta a Guarda Municipal e a Vigilância Sanitária para fiscalizar o Boteco Boa Praça e outros estabelecimentos da redondeza.
A cidade do Rio de Janeiro já registrou 6.791 mortes pelo coronavírus, 102 apenas nas últimas 24 horas, e possui 59.448 casos confirmados da doença. Além de uma questionada gestão de saúde, o que inclui falta de médicos e equipamentos para atender os pacientes, assim como salários atrasados. Ao mesmo tempo, a gestão Wilson Witzel (PSC) no Governo do Estado enfrenta investigações por suspeitas de fraude na compra de respiradores e na contratação de Organizações Sociais para gerir hospitais de campanha —o que pode resultar, inclusive, no impeachment do governador. Mas, a julgar pelas aglomerações que começam a pipocar em suas esquinas e calçadas, a pandemia já não assusta mais os cariocas. “Precisa voltar, essa quarentena é ruim para a mente. A economia está parada”, opina Jessica, que está acompanhada de duas amigas num dos bares da badalada rua Dias Ferreira, no Leblon.
Os que agora lotam bares são, sobretudo, oriundos das classes mais altas e que não estão sujeitos a filas intermináveis nas unidades de saúde e hospitais públicos. “Ficar em casa não vai fazer o vírus desaparecer. Precisamos voltar a viver de alguma forma, com todos os cuidados”, argumentou Barbara, outra que estava na mesa. “A gente evita aglomerar, mas nem sempre é possível”, afirma a amiga Gabriela entre risadas e sem máscaras.
Com a diminuição das filas por leitos de UTI e a estabilização das taxas de ocupação de hospitais, as autoridades municipais e estaduais do Rio iniciaram um plano de flexibilização no início do mês de junho —e que acabou gerando aglomerações nas ruas e praias desde o seu início. Uma linha seguida por São Paulo, com o plano apresentado pelo governador João Doria (PSDB) de retomada das atividades também no início de junho. Nesta sexta-feira, o governador autorizou que a capital paulista e outras cidades abram academias e retomem atividades culturais, como cinemas, mesmo com as taxas recordes de casos registradas nesta semana tanto na capital como no Estado. Neste sábado, o prefeito Bruno Covas (PSDB) detalhará como será a reabertura de bares e restaurantes na capital paulista, prevista para ocorrer na próxima segunda-feira.
A reabertura cede a pressões dos setores comerciais, em crise desde o início desta pandemia. Mas contraria qualquer recomendação de especialistas, justamente porque o país segue registrando altas taxas de mortes e casos diariamente. Nesta sexta-feira, o Brasil somou 1.290 óbitos nas últimas 24 horas, passando de 63.000 mortes e de 1,5 milhão de infectados. A expectativa de epidemiologistas é que nas próximas semanas possa haver novos picos, como reflexo das reaberturas precoces.
Um exemplo que serve para ilustrar essa preocupação ocorreu em Michigan, nos Estados Unidos. Na cidade de East Lansing, que permitiu a reabertura de bares a partir da segunda semana de junho, o número de contágios voltou a subir. Somente o estabelecimento Harper’s, que não exige o uso de máscaras, foi responsável por 158 novas infecções.
Países como Itália e Espanha iniciaram a flexibilização de um confinamento ainda mais rígido apenas depois que a pandemia atingiu seu pico e o número de novos contágios e óbitos diários passou a cair fortemente. A reabertura de bares e restaurantes no Rio e em São Paulo ocorre ao mesmo tempo que Madri retoma seu lazer noturno com uma série de restrições.
Beatriz está na fila com um grupo de amigos para entrar no Boteco Boa Praça. “Vamos ser realistas: já havia bares abrindo clandestinamente e pessoas se aglomerando”, opina. Ela assegura, contudo, que respeitou até o final a quarentena. “Mas já não aguentava mais, precisava sair. E para a gente não tem problema porque todos aqui já tiveram covid-19. Estamos imunizados”, dizia ela, ainda que especialistas não assegurem que uma pessoa contaminada esteja, de fato, livre de um segundo contágio. Já Vinícius admite que ainda não se sente confortável para sair na rua e retomar a rotina. Mas ainda assim se diz favorável à reabertura. “Fechou muito cedo. Agora tem que abrir, não tem jeito. Mas sou favorável que seja aos poucos, com muito cuidado”, afirma o rapaz, sentado com sua companheira no bar Ferro e Farinha.
Apesar das medidas de segurança impostas pelos decretos de flexibilização de governadores e prefeitos —em São Paulo, por exemplo, Dória impôs uma multa de 500 reais para quem frequentar espaços públicos sem máscaras—, há movimentos que vão no sentido contrário. Nesta mesma sexta-feira, o presidente Jair Bolsonaro vetou trechos da lei sobre obrigatoriedade de uso de máscaras aprovada pelo Congresso Nacional. Ele determinava que o equipamento de proteção individual seria obrigatório em locais fechados onde há reunião de pessoas, como estabelecimentos comerciais e industriais, templos religiosos e locais de ensino.
Além disso, o mandatário vetou o trecho que torna obrigatório que os estabelecimentos, tanto públicos quanto privados, forneçam máscaras de proteção aos clientes e frequentadores. “A propositura legislativa, ao estabelecer que o uso de máscaras será obrigatório em demais locais fechados em que haja reunião de pessoas, incorre em possível violação de domicílio por abarcar conceito abrangente de locais não abertos ao público”, afirma a justificativa do veto.
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