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O dilema que ameaça os ensaios clínicos da vacina contra a covid-19

A aprovação dos primeiros imunizantes levanta desafios éticos que podem afetar a continuidade dos estudos devido à desistência dos voluntários

Centro de vacinação em Colônia (Alemanha).
Centro de vacinação em Colônia (Alemanha).Lukas Schulze (Getty Images)
Milagros Pérez Oliva

O mundo aguarda impaciente as primeiras vacinas contra a covid-19 desenvolvidas pelas empresas farmacêuticas Pfizer, Moderna e AstraZeneca. A primeira recebeu sinal verde da Agência Europeia de Medicamentos, e a segunda foi aprovada pela Administração de Alimentos e Drogas (FDA) dos Estados Unidos. Ambas estavam sendo aplicadas com autorizações de emergência. A pressa em vacinar se justifica: a segunda onda da pandemia já provocou mais mortes na Europa que a primeira, e todos temem uma terceira onda após o Natal. Mas a aprovação das primeiras vacinas levanta dilemas éticos que podem complicar — e, em alguns casos, inviabilizar — os ensaios clínicos controlados por placebo que são desenvolvidos para essas mesmas vacinas e outras em etapa de projeto. Os voluntários recrutados deverão ter a oportunidade de se beneficiar das vacinas aprovadas e abandonar o estudo. Uma desistência em massa obrigaria a suspendê-los.

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Essa possibilidade preocupa os cientistas envolvidos e tem sido objeto de debate nos comitês de ética. Um artigo assinado por Rafael Dal-Ré e outros três autores na revista Annals of Internacional Medicine afirma que “uma vez aprovada uma vacina, os novos ensaios clínicos com placebo não serão eticamente aceitáveis”. Dos 172 projetos de vacina registrados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), 61 estão em avaliação clínica e 12 já entraram em fase III. Isso significa que são objeto de ensaios clínicos aleatorizados controlados por placebo, os chamados estudos duplo-cego, nos quais uma parte dos voluntários recebe a vacina e a outra uma substância inócua, sem que nem os pesquisadores nem os participantes saibam quem está em cada grupo.

Esses ensaios costumam durar dois anos, com várias análises intermediárias, e têm entre 30.000 e 60.000 participantes, o que significa que neste momento há mais de 400.000 pessoas envolvidas. As primeiras vacinas foram aprovadas com base em resultados intermediários, que demonstraram eficácia e segurança a curto prazo, mas ainda é preciso determinar aspectos tão importantes quanto a segurança a longo prazo, a duração da imunidade e se há diferenças de proteção entre faixas etárias e segmentos populacionais. Por outro lado, é possível que as primeiras vacinas aprovadas não sejam as melhores ou levantem problemas de distribuição. Por isso, será importante continuar pesquisando as demais.

No momento em que houver uma vacina disponível, os responsáveis pelos ensaios clínicos em andamento terão que oferecer aos participantes a opção de se beneficiar dela. Deverão perguntar a cada um se deseja continuar com o estudo ou prefere abandoná-lo para se vacinar. Portanto, o mais lógico será abrir o código que permite saber se a pessoa recebeu vacina ou placebo. Se houver muitas desistências, o desenho inicial do estudo pode ser inviável e terminar antes de obter os dados que faltam. “A segurança a longo prazo é especialmente importante no caso das vacinas que utilizam a nova tecnologia de RNAm, pois suas características são menos conhecidas”, adverte Dal-Ré. Essa é a técnica utilizada nas vacinas da Pfizer e da Moderna.

“Trata-se de uma situação nova, para a qual não há precedentes”, admite Francisco Abad, professor de Farmacologia da Universidade Autônoma de Madri. Esse pesquisador do Hospital Universitário de La Princesa participa de dois ensaios da vacina da Janssen: um de fase II, com 190 voluntários recrutados, e outro de fase III, que começará em breve em oito hospitais e contará com 30.000 participantes de nove países. “O ideal seria poder terminar os estudos iniciados para responder a todas as perguntas propostas, mas, do ponto de vista ético, talvez isso não seja possível. A situação dará margem a muita discussão. Ainda não estamos no ponto de ter que tomar decisões, mas ele chegará.”

A OMS quis se antecipar com uma consulta a um grupo ad hoc de especialistas, que se reuniu em 6 de novembro. Sua conclusão, publicada na revista The New England Journal of Medicine, é que os estudos aleatorizados controlados com placebo devem continuar e que os promotores, dadas as especiais circunstâncias, não são obrigados a abrir os códigos que permitem saber qual participante recebeu placebo ou vacina. Os especialistas consideram que é “eticamente apropriado” continuar os estudos duplo-cego e designar, de forma aleatória, novos participantes ao grupo da vacina ou ao do placebo em substituição aos que abandonarem. Considerando as excepcionais condições, eles confiam que as pessoas que se oferecem por motivos altruístas entendam a importância de prosseguir.

Essa abordagem pode criar problemas para os comitês de ética da pesquisa. Em todo caso, haverá discussão. Francisco Abad diz que diferentes cenários estão sendo estudados. “Do ponto de vista da ciência, o melhor é continuar os ensaios tal como estão previstos. Mas, se não for possível, deveremos escolher a opção menos ruim.” O ensaio do qual ele participa deve durar um ano, mas, obviamente, quando houver uma vacina disponível, é possível que perca uma parte dos voluntários, incluindo profissionais de saúde que terão prioridade na vacinação. Abad acredita que “será necessário alcançar um compromisso entre os comitês de ética, as agências reguladoras e os promotores para buscar uma solução que atenda às necessidades dos participantes, mas também das empresas farmacêuticas, cujo interesse é concluir o ensaio.”

Cristina Avendaño, farmacologista do hospital Puerta de Hierro (Espanha) e porta-voz do grupo de vacinas da Federação de Associações Médico-Científicas Espanholas, considera que não haverá inicialmente uma grande perda de voluntários, já que as novas vacinas terão uma entrada gradual. “Ninguém espera que a aprovação de uma ou duas vacinas fará o vírus desaparecer. Ainda haverá muita doença pela frente. Além disso, estamos num contexto de prevenção de uma doença que a maior parte das vezes se manifesta de forma leve. Não é como acontece quando ensaiamos um fármaco para uma patologia que não tem alternativa terapêutica. Se a incidência da doença for baixa, é possível que os voluntários do grupo placebo queiram continuar. Em todo caso, a metodologia científica deve se adaptar à realidade. Se pudermos aguentar um ano com os ensaios com placebo, melhor. Mas, se perdermos voluntários, poderemos seguir de outras maneiras, por exemplo comparando o grupo já vacinado com a população em geral.”

À medida que toda a população tiver acesso à vacina, já não haverá incentivo para continuar com o ensaio. E aqui a falta de equidade na distribuição pode ter um papel importante. Os países que não tiverem recursos para vacinar todos os habitantes de forma imediata poderiam se tornar reservatórios de voluntários para os ensaios. Um estudo da Universidade Duke (EUA) com dados do final de novembro indica que as empresas com vacinas mais avançadas já comprometeram a venda de 6,8 bilhões de doses, das quais 3,7 bilhões correspondem a países ricos. Supondo que a aliança Covax (liderada pela OMS) e outros mecanismos garantam o acesso universal à imunização, seriam necessários de três a quatro anos para fabricar vacinas suficientes para cobrir toda a população do planeta. E é provável que a vacina precise de uma dose de reforço após um tempo. Para Abad, seria questionável concentrar os estudos em países pobres.

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