Da masturbação feminina ao aborto: por que Elaine Benes, da série ‘Seinfeld’, é a referência que precisa voltar
Conversamos com humoristas e fãs da série sobre a influência da personagem que demonstrava a existência de “mulheres que fugiam da norma que dizia que precisavam ser agradáveis e simpáticas o tempo todo”
Dizem que o último episódio de Seinfeld, exibido em 14 de maio de 1998, esteve a ponto de salvar a vida de Frank Sinatra. As ruas de Los Angeles ficaram praticamente vazias entre as 20h e 22h, justamente quando o cantor sofreu um enfarte e precisou imediatamente de uma ambulância, porque os cidadãos estavam na frente dos televisores, despedindo-se de uma ficção que lhes causou risos por quase uma década. Foi o episódio mais visto da história da televisão, à frente do final de Friends, com 76 milhões de espectadores. Desde 1º de outubro, ele pode ser visto na Netflix junto com as outras temporadas, já que a plataforma pagou mais de 500 milhões de dólares (2,74 bilhões de reais) pelos direitos de distribuição —uma ninharia em comparação com a rentabilidade que a operação trará.
Os personagens dessa turma —habitantes da Manhattan dos anos 1990, todos na faixa dos 30 anos— são uma indiscutível referência da cultura pop, assim como os de Friends, mas por razões que pouco têm a ver. Eles não frequentam um café acolhedor como o Central Perk, e sim boteco tipo pé-sujo; não alugam apartamentos invejáveis com preços desvalorizados, nem há tramas românticas, porque a dinâmica do relacionamento deles se baseia em zombar da desgraça alheia. E uma das que mais riam era Elaine, a única personagem feminina da série, interpretada por Julia Louis-Dreyfus.
Quando Larry David e Jerry Seinfeld propuseram a sitcom, não incluíram uma mulher num papel relevante, mas tiveram que ampliar o elenco porque a NBC ameaçou vetar a produção após ver o piloto. Assim introduziram Elaine Benes, inspirada em Carol Leifer, uma ex-namorada de Seinfeld, como é também a personagem na série. Alejandra Palés, jornalista especializada em séries e colaboradora de veículos como Serielizados e Diari Ara, considera que “foi um acerto terem incluído essa personagem, como pediu o canal. Porque, embora Elaine possa ser tão absurda como seus amigos, também oferece um ponto de vista feminino que acredito ser imprescindível, ou então teria ficado uma série muito inclinada na direção da testosterona”.
Apesar de Elaine e Seinfeld terem um passado amoroso, esse aspecto não se desenvolve. É uma das características que marcam a diferença em relação à maioria das ficções: não há atração entre os protagonistas. “Lembro que, quando via a série e era pré-adolescente, me frustrava enormemente porque não entendia que não ficassem juntos ou não se explorasse de alguma forma a tensão sexual. Só quando fiquei um pouco maior entendi que a série não tratava disso, e que estava muito bem que não fosse sobre isso”, afirma Palés.
Elaine é uma mulher independente, que trabalha na indústria editorial, com caráter muito forte e uma capacidade surpreendente de dar empurrões apesar da sua baixa estatura. “Está cansada de tudo. Não suporta os seus amigos, não suporta os seus conhecidos, não suporta as festas, não suporta seu trabalho nem seus colegas de trabalho, não suporta as injustiças, não se cala por nada, é divertida, é vingativa (e como eu gosto que seja assim e se divirta com isso)”, afirma a artista Rocío Quillahuaman. As protagonistas de suas conhecidas animações, em que retrata com humor situações do cotidiano, têm muito a ver com Elaine. “Certamente foi uma referência para muitas humoristas de hoje em dia. Para mim, foi tanto em nível de estilo como também em nível artístico. Há um episódio da oitava temporada de Seinfeld que se chama O paciente inglês, em que Elaine começa a gritar no meio de uma sessão desse filme no cinema porque o detesta e não o suporta mais. Essa cena tem a essência de tudo o que eu quero que minhas animações sejam”, diz.
O estilo que Quillahuaman aponta —“Se uso casacos compridos de senhora é por causa dela”, diz— tornou-se tão reconhecível como o da Rachel de Friends e a Margot em Os excêntricos Tenenbaums, embora vá evoluindo ao longo das temporadas para se adaptar às mudanças na vida da personagem, que passa de trabalhadora precária a chefa dentro do setor editorial. Charmaine Simmons, figurinista de Seinfeld, criou sua imagem usando mocassins com meias três-quartos à vista, jaquetas de estilo masculino, mochila de couro no ombro (só em um deles) e vestidos longos e esvoaçantes, sua principal característica. Jaime Perlman, ex-diretora de arte da Vogue UK, afirmou certa vez que seu armário estava cheio de “vestidos da Elaine”. Cômoda e atraente, mas “sem que sua prioridade fosse parecer sexy”, conforme especificou Julia Louis-Dreyfus no The New York Times.
Referência feminista?
Foi no seu momento —ao menos para mulheres cisgênero, brancas, heterossexuais e de classe média—, mas às vezes as ficções não resistem bem à passagem dos anos, e esta estreou há três décadas. Entretanto, Elaine foi pioneira no tratamento de certos temas que continuam na pauta hoje em dia. Veja-se, por exemplo, o do aborto: na sexta temporada, no episódio intitulado O sofá, Benes renuncia a uma relação com um homem que lhe atrai muito porque ele não é partidário da liberdade de opção. E os roteiristas tampouco deixam de lado a comédia para desenvolver a história, não há drama além da decepção de Elaine por perder um amante tão bonito.
Sua maneira de viver a sexualidade é outro aspecto notável da personagem, já que seu desejo e suas relações se mostram da mesma maneira como no resto do elenco —Seinfeld, Constanza e Kramer, três homens. De fato, o episódio preferido de Larry David, pelo qual ganhou um Emmy, é O concurso, da quarta temporada, em que os quatro fazem uma aposta para ver quem consegue ficar mais tempo sem se masturbar. Contrariando o que todos pensavam, a segunda que cai é ela. Também quer escolher seu método anticoncepcional sem que ninguém interfira, e declara abertamente que não deseja ter filhos.
“No seu momento, e também agora, era a demonstração de que existiam mulheres que fugiam da norma segundo a qual precisavam ser agradáveis e simpáticas o tempo todo”, destaca Palés. “Certamente haverá pequenos detalhes que nos parecerão datados ou antiquados com relação à nossa mentalidade atual, mas me parece uma personagem bastante adiantada e que não destoaria numa comédia ambientada na atualidade.”
Rocío Quillahuaman também considera que a personagem continua tendo plena validade. “No episódio que descrevia antes, há uma cena em que ela diz que as cenas de sexo desse filme lhe parecem irreais, e ela fala algo muito divertido: ‘Give me something I can use’ (‘dê-me algo que eu possa usar’). E todos seus fracassos amorosos, que Nick Lutsko bem compilou nesta canção. A primeira vez que vi esta série eu era muito mais jovem, mas tornei a vê-la várias vezes em diferentes etapas da minha vida adulta e fui notando que a única personagem com quem me sinto identificada é Elaine. Quero dizer, é uma personagem de uma mulher branca escrita por homens brancos, mas mesmo assim... é realmente a única santa da minha devoção.”
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