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O esquema de pirâmide da LuLaRoe, império têxtil que arruinou milhares de mulheres que vendiam leggings

Série documental da Amazon Prime, ‘As faces da marca’ tenta desmascarar dinâmica de imoralidade e misoginia de empresa familiar que se tornou fenômeno social entre as donas de casa dos EUA

DeAnne e Mark Stidham, fundadores da polêmica empresa têxtil LuLaRoe.
DeAnne e Mark Stidham, fundadores da polêmica empresa têxtil LuLaRoe.PRIME VIDEO
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O sucesso meteórico LuLaRoe atingiu o pico em 30 de julho de 2019. Naquele dia, a empresa têxtil de origem californiana mostrou todo seu poder ao contratar ninguém menos que Katy Perry para que se exibisse, com um show privado, a um público seleto: as distribuidoras de suas roupas. Milhares de mulheres, donas de casa de classe média, que vendiam suas célebres —e de gosto estético duvidoso— leggings às outras mães das AMPA em festas vespertinas ou diretamente do Facebook. E que formavam uma estrutura de negócio piramidal que as levou a uma falência inevitável. Um destino, no entanto, difícil de intuir quando os eventos corporativos que celebram sua incorporação são megafestas orçadas em 30 milhões de dólares (158 milhões de reais) e quando você tem Katy Perry cantando a cinco metros de distância.

O retrato dessa miragem e sua posterior catástrofe é objeto de estudo de As faces da marca, a —tão sinistra quanto divertida— série documental da Amazon Prime Video, que alça os fundadores da empresa, o casal DeAnne e Mark Stidham, a sucessores de Sheela (Wild Country) e Carole Baskin (Tiger King) como seus maquiavélicos, reacionários e magnéticos vilões. Os diretores Jenner Furst e Julia Willoughiby Nason tentam decifrar, por meio dos relatos em primeira pessoa de seus protagonistas, como um modesto negócio familiar, nascido no porta-malas de um carro, acabou se transformando num império de comissionamento avaliado em mais de 1,5 bilhão de euros (9,2 bilhões de reais).

A história da LuLaRoe começa como quase qualquer outro conto de inspiração de Hollywood: com uma mãe esforçada —DeAnne— que passa quase três décadas na estrada trabalhando como vendedora ambulante. Seu catálogo é formado por vestidos e saias compridas que ela mesma confecciona para festas particulares frequentadas pelas mães na saída do colégio. Faz tanto sucesso que Mark, seu segundo marido, entra no negócio para realizar tarefas de produção. Em 2012, quando uma cliente pergunta se também pode vender seus produtos entre suas amigas em troca de comissão, a LuLaRoe vê a luz. Como afirma o casal diante das câmeras, por trás de seu suposto esquema de pirâmide só havia uma intenção honesta e desinteressada: “Ajudar os outros a ganhar dinheiro”. Dois anos depois, impulsionada pela sensação do athleisure, a roupa esportiva para vestir diariamente, a firma adiciona os leggings à sua linha de produção, com estampas de todo tipo e aptos para todos os tamanhos, e se transforma num fenômeno social sustentado por todo o espectro de donas de casa dos subúrbios brancos dos Estados Unidos. Mulheres com estudos que queriam se sentir realizadas com um trabalho de meio período realizado em sua própria casa, apoiando-se nos contatos dentro da própria comunidade e na venda direta em plataformas como Facebook e Instagram para comercializar seu estoque.

O desembolso inicial para se tornar vendedora da LuLaRoe era superior a 4.000 euros (cerca de 25.000 reais). Mas, incentivadas pela promessa de que seu salário médio mensal giraria em torno de 1.200 euros (7.400 reais), milhares de mulheres quiseram entrar neste castelo de cartas. As listas de espera superavam as oito semanas, e as vendedoras nem sequer podiam escolher os modelos das roupas que recebiam. Como em qualquer outra empresa com estrutura de múltiplos níveis, o negócio já não era vender roupa, e sim recrutar, sem escrúpulos, mais mulheres que comprassem —e tentassem vender— essas roupas. Algumas das primeiras vendedoras, transformadas depois no que a empresa chama de “mentoras”, chegaram a ter até 5.000 mulheres embaixo de si, obtendo cheques mensais com mais de seis dígitos somente graças às comissões. Um modelo que condena a grande maioria de seus funcionários à ruína, embora a empresa fosse avaliada em mais de 1,5 bilhão de euros (9,2 bilhões de reais) e seus diretores voassem em jatinhos particulares. Como explica o presidente da organização Pyramid Scheme Alert, Robert Fitzpatrick, nessas empresas só podem se enriquecer aqueles que fazem parte delas desde o início, pois seu salário depende das comissões recebidas pela atividade de seus subordinados e, por sua vez, da atividade dos subordinados de seus subordinados. “Mais de 80% das pessoas não têm ninguém abaixo delas. Têm muito a perder”, explica. No caso concreto da LuLaRoe, 0,01% de suas vendedoras, que estavam no cume da pirâmide, embolsaram em 2016 mais de 127.000 euros (785.000 reais) por mês em comissões, enquanto 70% não ganharam nada.

Mas além da perspectiva de enriquecimento, da suavidade dos leggings e dos slogans baratos de empoderamento, irmandade e independência, o que acabou atraindo cerca de 90.000 distribuidores foi a imagem de sucesso artificial que a empresa exibia em redes sociais, eventos corporativos com presença de famosos e até cruzeiros temáticos. “Eles queriam que você tivesse bom aspecto para recrutar as pessoas e que vivesse um estilo de vida fabuloso (...). Comecei a atingir o limite de meus cartões de crédito, vivendo de cheque em cheque. Mas meu império crescia. Tinha mais de 2.500 pessoas na minha equipe naquele momento. O que me diziam funcionava, tinha que continuar fazendo isso”, reconhece em um dos episódios Courtney Harwood, uma das mentoras de maior sucesso da LuLaRoe e cuja vida foi “destruída” após trabalhar lá. Fazer parte do núcleo duro da companhia era muito mais do que vender roupa: significava se submeter ao processo de transformação liderado por seus fundadores, DeAnne e Mark Stidham, cultuados como verdadeiras divindades. Pertencente à fé mórmon, o casal compartilha 14 filhos, considerando os que vieram de relações anteriores, os comuns e os adotados. Dois inclusive se casaram entre si. “Não têm laços de sangue. Nunca viveram juntos na mesma casa. É curioso... e genial”, dizem eles sobre essa união. A maioria dos descendentes também ocupa cargos de direção na empresa, embora não tenham nenhuma experiência de trabalho prévia.

Os modos ditatoriais dos Stidham no comando da companhia não escondiam uma mensagem disciplinadora e ultraconservadora, que incentivava as clientes a se submeter aos seus maridos (“Podemos ser fortes, mas às vezes você tem que deixá-lo ser seu herói”, explica sua presidenta), a colocar a família na frente de qualquer ambição pessoal ou até mesmo a viajar para Tijuana, no México, para se submeter a uma redução de estômago a fim de oferecer melhor imagem da empresa. “Comecei a perceber que havia muito controle. Controle sobre o que você usava, sobre seu aspecto, seu peso. Era assustador. Pensei, ‘Meu Deus, estou numa seita’”, afirma na série Roberta Blevins, outra das vendedoras de maior sucesso e também maior visibilidade na hora de denunciar os abusos do esquema.

Em 2017, com até 500 incorporações por dia, o crescimento meteórico da empresa começou a prejudicar o processo de produção, traduzindo-se em roupas com furos, bainhas fora de lugar, umidade e estampas repetidas ou copiadas. As queixas de milhares de mulheres endividadas foram ignoradas pelos diretores, que nem sequer aceitavam a devolução ou o reembolso dos artigos com defeito. As denúncias dessas clientes se uniram depois às dos fornecedores por inadimplências milionárias, à de vários artistas por violações dos direitos autorais em suas estampas e a uma ação civil do Estado de Washington, que acusava o esquema de ser uma fraude. Devido à falta de legislação nesse campo, o Ministério Público não pôde levar a empresa a julgamento, mas conseguiu que mudasse suas draconianas condições operacionais e que distribuísse mais de quatro milhões de euros (25 milhões de reais) entre as 3.000 distribuidoras desse Estado para que retirassem as acusações. Apesar de perder dezenas de milhares de vendedoras vítimas dos sinistros modos de seus fundadores nos últimos anos, a LuLaRoe continua em atividade. Tanto que um grupo organizado boicotou o documentário em sites especializados dando péssimas notas, com a intenção de que seu eco midiático acabe quase tão furado e mofado quanto os próprios produtos da empresa.

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