Uma nova bandeira do Brasil para o pós-Bolsonaro?

A bandeira brasileira é uma das poucas em que não figura a cor vermelha, que costuma significar o sangue derramado nas conquistas. O Brasil não foi um país de falar de seus grandes conflitos

Manifestante em protesto com Bolsonaro em São Paulo, no último dia 3.ROOSEVELT CASSIO (Reuters)

O Brasil está politicamente agitado, em alto-mar, sem saber ainda onde vai desembocar. Se as diferentes pesquisas não estiverem mentindo, parece cada dia mais certo que o atual presidente Jair Bolsonaro —tachado de nazifascista e genocida pelo abandono em que deixou o país com seu negacionismo da pandemia, da qual chegou a zombar apesar de ...

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O Brasil está politicamente agitado, em alto-mar, sem saber ainda onde vai desembocar. Se as diferentes pesquisas não estiverem mentindo, parece cada dia mais certo que o atual presidente Jair Bolsonaro —tachado de nazifascista e genocida pelo abandono em que deixou o país com seu negacionismo da pandemia, da qual chegou a zombar apesar de já ter feito mais de meio milhão de mortos— está em queda livre. Poderia nem chegar à reeleição em 2022, e se chegasse, hoje não só o ex-presidente Lula como vários outros candidatos do centro o derrotariam.

Talvez por isso, ao ver-se cada dia mais acossado, aumenta sua agressividade e continua ameaçando não aceitar o resultado das urnas em caso de derrota. E se protege nas Forças Armadas, na polícia e até nas milícias para se preparar para a guerra. E o mais grave, como Eliane Brum acaba de escrever em sua última coluna neste jornal —”Jair Bolsonaro é mito, sim”—, não basta derrotar o presidente através de um impeachment, por mais urgente e importante que seja. O mais importante e urgente é acabar com a “criatura mítica”, pois o mito do capitão continuará mesmo com ele fora do poder.

Para destronar não só o presidente, mas também acabar com o mito, será necessário, segundo Eliane Brum, “refundar o Brasil”. E é verdade que o Brasil atual, o do mar de vítimas da pandemia, no qual foram aniquilados a cultura, a educação, o meio ambiente, os direitos humanos essenciais e perseguidos os diferentes e os meios de comunicação, não foi apenas humilhado, mas destruído e pisoteado. É que com o bolsonarismo o país fez rebrotar o pior de sua história, seus instintos mais primitivos, sua perseguição aos diferentes, seu racismo e seu abismo de desigualdades sociais.

A bandeira de um país sempre foi o emblema de sua essência, o melhor e o pior de sua história passada e presente. E o mito bolsonarista manchou a bandeira deste país ao apoderar-se dela, gesto que significou também a ruptura da gente, a divisão que é sempre algo satânico. É como se hoje existissem dois brasis e a bandeira que era de todos tivesse sido usurpada pelo mito.

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Durante as últimas manifestações de protesto do “Fora Bolsonaro”, no último sábado, um dos presentes em São Paulo, Paulo César, disse algo muito significativo à minha colega Regiane Oliveira, que cobria o ato. Segundo ele, “a bandeira do Brasil agora representa a morte, não é mais ordem e progresso, mas desordem e retrocesso”.

Existe, de fato, um consenso de que o bolsonarismo-raiz assassinou a bandeira que era de todos os brasileiros ao se apossar dela como símbolo de destruição e morte. Por isso, como afirma Eliane Brum, para se livrar não só de Bolsonaro, por mais urgente que seja, seria necessário também refundar o país. E uma das primeiras coisas seria que nascesse uma nova bandeira que fosse o reflexo de um país também novo, livre dos demônios que o bolsonarismo exacerbou envenenando o país.

Essa nova bandeira poderia ser o símbolo de um país não só reconciliado, que conseguisse resgatar dos escombros suas essências perdidas, mas que também acolhesse o que hoje falta aos símbolos de sua bandeira atual. Um novo Brasil precisaria incorporar à sociedade, com todos os direitos, os descendentes dos escravos, todas as pessoas negras que representam a maioria do país, e os indígenas, os verdadeiros herdeiros do país que sempre estiveram apartados e desprezados e que hoje o mito tenta exterminar para tomar as poucas terras que lhes restaram já que todo o Brasil era deles.

Sim, um novo Brasil precisaria de uma nova bandeira ainda não contaminada pelo vírus bolsonarista. Assim como depois de uma longa ditadura os países que recuperam a democracia costumam refazer sua Constituição, do mesmo modo muitos refazem suas bandeiras. Por que não fazer isso no Brasil? Bastaria uma constituinte especial formada por pessoas de todas as classes sociais, artistas, pensadores, trabalhadores, indígenas. E até pelas crianças, que herdarão essa nova bandeira.

Estive analisando o mapa de todas as bandeiras do mundo, e a atual do Brasil é uma das poucas em que não figura a cor vermelha, que costuma significar o sangue derramado nas conquistas. O Brasil não foi um país de falar de seus grandes conflitos sangrentos e privilegiou as cores da vida e da felicidade, como o verde, o azul, o amarelo e o branco.

A nova bandeira de um novo Brasil deveria ser pensada para que reflita e ressalte todas as lacunas da sociedade, todos os abusos cometidos contra os mais humildes, o desprezo pela diversidade sexual e de gênero, os direitos humanos pisoteados e a importância que devem ter os afrodescendentes, aos quais a cultura do Brasil tanto deve. Seria como expulsar dessa bandeira todos os demônios do bolsonarismo genocida e sua predileção pela violência e pela morte, pela divisão e pela falta de humanidade.

O Brasil, o mais genuíno, o de suas melhores essências, o invejado fora, o que com razão ou sem ela se identifica com os valores da felicidade, da alegria, do acolhimento e da sua riqueza de culturas, precisa de uma bandeira que seja seu melhor espelho em que não haja rastro das baixezas e dos descaramentos do bolsonarismo que está destruindo a alma deste povo.

Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como ‘Madalena’, ‘Jesus esse grande desconhecido’, ‘José Saramago: o amor possível’, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.

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