Como as máscaras do coronavírus passarão à história?
Talvez as máscaras de hoje, globalizadas, sejam um símbolo de nossa geração do descarte, do use e jogue fora
As máscaras são tão antigas como a humanidade e sempre estiveram repletas de simbolismo e enraizadas na arte de seu tempo. Um professor poderia hoje ensinar História seguindo os vestígios das máscaras, que podem ser tão antigos como o Homo sapiens. A mais antiga, recém-descoberta em inscrições do Egito, tem seis mil anos.
Em cada lugar e em cada época, as máscaras tiveram simbolismos e usos diferentes. Existem máscaras rituais, pagãs e religiosas, para afugentar os maus espíritos. Há também as festivas ou de defesa contra uma epidemia, como na Idade Média com a peste.
Muitas das máscaras do passado estão hoje em museus importantes e representam diferentes marcos na História.
Hoje poderíamos nos perguntar que mensagem e que simbolismo as máscaras do coronavírus deixarão na História. É difícil imaginar que dentro de 50 anos uma dessas milhões de máscaras esteja à mostra em algum museu.
Talvez as máscaras de hoje, globalizadas, sejam um símbolo de nossa geração do descarte, do use e jogue fora.
Sem outro simbolismo a não ser o da proteção.
No Egito, as máscaras eram usadas somente com os mortos. Pode-se dizer que no passado todas as máscaras, mesmo as da peste, eram vistas como objeto de arte. Daí sua enorme diversidade. As mais modernas entre as lúdicas, como as usadas nos carnavais de Veneza, acabam sendo verdadeiras obras de arte.
O simbolismo das máscaras vai da filosofia à psiquiatria. Os pais da psicanálise, como Freud e Lacan, se interessaram pelas máscaras. Este último ligou a história das máscaras à surpresa da criança que pela primeira vez se reconhece no espelho.
Tudo isso nos conduz ao mistério de que nunca poderemos ver nosso rosto ao natural, senão por reflexo. Essa incapacidade de ver o nosso rosto leva à reflexão sobre a importância do outro, que é o único que nos pode ver naturalmente.
Só no olhar do outro podemos nos reconhecer.
As máscaras têm sido a tentativa de ocultar nossa personalidade e ao mesmo tempo revelá-la. Saber se somos algo definitivo ou que muda de acordo com o olhar do outro.
Aferrado a esse mistério de nossa personalidade, o homem inventou máscaras que, das rituais às teatrais, são uma busca da própria personalidade ou uma forma de a escondê-la ou negá-la.
Quanto mais antigas as máscaras, mais têm sido associadas à necessidade de afugentar os maus espíritos. São a luta contra as várias identidades que se aninham em nós.
As máscaras de hoje, todas iguais, sem o menor traço de arte e desprovidas de simbolismo como as do passado, tão logo a epidemia acabe serão relegadas no esquecimento.
As máscaras sempre tiveram poetas que tentaram descobrir o feitiço que carregam consigo e quanto estão ligadas à busca pela identidade.
O grande poeta uruguaio Mario Benedetti, porém, não gostava de máscaras. Em seu poema Máscaras, ele escreveu:
gosto dos que sonham sem disfarces
e não têm pudor de suas ternas rugas
e se à noite olham, olham com todo o corpo
e quando beijam, beijam com seus lábios de sempre.
as máscaras não servem como segundo rosto,
não suam/ não se abalam/ jamais se ruborizam
suas bochechas não ostentam lágrimas de entusiasmo
e o queixo não treme de soberba ou de esquecimento
quem pode se apaixonar por uma face minguada?
não há pele falsa que supra a face da lascívia
as máscaras alegres não curam a tristeza
não gosto das máscaras/ já disse
Os poetas costumam ser o melhor espelho dessa cumplicidade com o inconsciente e nos ajudam a entender a força dos símbolos sem os quais nossa espécie perderia a grandeza de sua originalidade.
No debate de hoje sobre proteger-nos com a máscara contra o coronavírus, o poeta nos revela que nossa realidade com todas as suas impurezas será sempre melhor do que qualquer tipo de máscara ou fantasia.
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