A encíclica “laica” do papa Francisco
O santo de Assis, se hoje ressuscitasse, subscreveria a nova encíclica do Papa que leva seu nome. E como ele frisaria os pecados sociais e o resgate da “irmã Terra”, hoje martirizada por um poder econômico que usa suas riquezas
Antigamente os papas costumavam escrever suas encíclicas dirigidas à Igreja e sobre problemas internos do catolicismo. Hoje o papa Francisco acaba de publicar sua nova encíclica que pode ser chamada de “laica” porque ultrapassa os limites do puramente religioso para enviar uma carta ao mundo confuso de hoje, que se debate entre a modernidade raivosa das novas tecnologias, incapazes de acabar com a miséria, e as desigualdades sangrentas das sociedades em que o demônio do mercado que Francisco condena, é incapaz de criar igualdade de possibilidades para todos e arrasta à fome e ao exílio milhões de pessoas.
E é de forte simbolismo que o único Papa da história a escolher o nome de Francisco de Assis queira ir pessoalmente apresentar sua nova encíclica “laica” à festividade de São Francisco, em Assis, onde se iniciou em plena Idade Média a primeira grande revolução social religiosa da Igreja, após ser lançada pelo profeta judeu, Jesus, nascido em uma aldeia como a de Nazaré, tão insignificante que sequer aparecia nos mapas de seu tempo.
O santo de Assis foi o precursor do ecologismo de hoje com seu amor e seus cânticos à natureza, chamando de “irmãos” ao sol e às árvores e aos animais, algo que soava como loucura à Igreja da época, que detinha o poder religioso e político do mundo.
O papa Francisco, desde o primeiro dia em que foi escolhido, em vez de se dirigir e se instalar nos palácios vaticanos foi, e continua ali, a uma simples pensão, que abriga sacerdotes de todo o mundo que passam por Roma e não podem pagar o luxo de um hotel.
Se são Francisco é hoje admirado até mesmo fora do catolicismo nas demais fés religiosas e pelos próprios agnósticos e ateus, é porque é visto como o simbolismo do amor universal, que abraça a tudo o que foi criado sem distinção e que enviou ao mundo a mensagem de que os bens da terra são de todos e não só de alguns.
O papa Francisco reúne em sua nova encíclica o espírito da revolução iniciada pelo “poverello de Asís”, que, já à época, criticava a Igreja do poder e do luxo e foi à procura do que a sociedade de então depreciava, os párias e os desprezados.
Suas encíclicas como essa última criam problemas aos próprios católicos porque em vez de falar do céu e do inferno e de condenar divórcios e abortos, se dirige ao mundo de hoje que continua deixando na sarjeta os marginalizados sacrificados no altar do consumismo e do deus do mercado.
Se hoje ressuscitar, Francisco de Assis subscreveria feliz a nova encíclica do Papa que leva seu nome. E como ele frisaria os pecados sociais e o resgate da “irmã Terra”, hoje martirizada por um poder econômico que usa suas riquezas para continuar favorecendo aos que já têm tudo de sobra.
Francisco de Assis continua sendo raivosamente atual e se pudesse voltar mandaria uma mensagem parecida à colocada nas redes pela poeta Roseana Murray em que diz: “se hoje todos os políticos do mundo ao assumir seus cargos tivessem que fazer um juramento a são Francisco, o planeta seria salvo”, porque então “não matariam, não roubariam, saberiam que os animais são nossos irmãos, que a dor dos outros é nossa dor. Saberiam que a vida é sagrada. Todas as vidas, que existe tanta beleza na terra que a palavra destruição seria eliminada dos dicionários. São Francisco, tão distante no tempo, é nosso contemporâneo”.
Os simbolismos cruzados dos dois Franciscos podem ser a levedura a oferecer a nosso mundo cada vez mais dividido e disposto a sacrificar suicidamente a convivência e os valores da cultura, uma matéria cada vez mais desprezada pelo novo Governo do Brasil e que, como indica sua etimologia de “cultivar a terra”, é a que pode reconciliar um mundo cada vez mais afastado de suas raízes e por isso mais insatisfeito consigo mesmo.
Os dois Franciscos unidos e suas mensagens universais de amor universal são uma esperança de que nem tudo está perdido e que, como diz o poeta canário, Salvadore Perdomo (em tradução livre):
Há caminhos cegos
veredas inacabadas,
que não foram feitas para
olho algum,
vias mortas que
nenhuma luminosidade visitou
E um embate impotente
contra esse tempo atroz.
Talvez um dia, inesperado, sem querer
erga a cabeça e tropece com o sol.
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