Valores antidemocráticos afetam as bases dos partidos brasileiros
Pesquisa mostra que os ataques a instituições democráticas feitos por Bolsonaro e apoiadores ampliam risco de contaminação em certas camadas da sociedade por discursos autoritários
O desgaste na imagem dos partidos políticos perante a sociedade não é fenômeno novo ou exclusivo do Brasil. Nos últimos anos, a ascensão de candidatos de extrema direita ao redor do mundo, o Brasil incluso, intensificou a desconfiança das pessoas em relação a instituições democráticas, sobretudo diante dos ataques promovidos por presidentes e outros agentes políticos. Se é verdade que existem desafios à democrati...
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O desgaste na imagem dos partidos políticos perante a sociedade não é fenômeno novo ou exclusivo do Brasil. Nos últimos anos, a ascensão de candidatos de extrema direita ao redor do mundo, o Brasil incluso, intensificou a desconfiança das pessoas em relação a instituições democráticas, sobretudo diante dos ataques promovidos por presidentes e outros agentes políticos. Se é verdade que existem desafios à democratização dos partidos e grandes obstáculos para a maior presença e representatividade de alguns grupos, é importante reconhecer que os partidos foram e continuam sendo elementos centrais para o funcionamento e estabilidade das democracias.
Dado esse panorama, é importante examinar como os partidos têm sido impactados pelo cenário de radicalização que vivemos no Brasil e em outros países, especialmente acentuado por influência de lideranças de extrema direita. Como os ataques a instituições democráticas, que se tornaram rotineiros com a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência, reverberam no interior dos partidos brasileiros? Atitudes e valores abertamente antidemocráticos possuem alguma ressonância entre as pessoas que fazem o cotidiano da política no Brasil?
Uma pesquisa de opinião inédita realizada junto a filiados e dirigentes partidários buscou responder a essas e diversas outras questões. A pesquisa contou com a participação de 2.514 filiados de todos os partidos brasileiros, em todos os Estados da federação. Eles preencheram um questionário com cerca de 50 perguntas enviado por e-mail, entre março e maio de 2020. Enquanto pesquisas desse tipo são comuns nas democracias mais tradicionais, o conhecimento sobre o perfil, valores e padrões de comportamento desses indivíduos ainda é praticamente nulo no Brasil.
Na etapa experimental da pesquisa, dividimos os entrevistados aleatoriamente em dois grupos com o objetivo de investigar como os ataques às instituições democráticas são recebidos entre os filiados. Valendo-se de escalas do tipo concordo-discordo, parte dos entrevistados (grupo de controle) indicou, espontaneamente, em que medida concordava com afirmações relativas à legitimidade do STF para arbitrar conflitos políticos no país; à democracia como melhor forma de governo; e quanto à legitimidade das negociações entre o presidente da República e os partidos representados no Congresso visando a governabilidade.
Para o outro grupo de entrevistados (grupo de tratamento), apresentamos vinhetas que reproduziam declarações proferidas por Bolsonaro e seu núcleo mais próximo de apoiadores, situadas imediatamente antes das questões concordo-discordo resumidas acima. O objetivo das vinhetas era identificar como o discurso de ódio e os ataques a instituições podem influenciar a percepção e a adesão dos filiados a valores democráticos. O texto das vinhetas continha ataques ao STF, à democracia como meio mais adequado para melhorar a vida das pessoas, e uma frase que contestava negociações e coalizões entre partidos como componente legítimo da política democrática.
Os achados iniciais apontam para o impacto dessas falas radicalizadas sobre a percepção dos filiados a respeito de instituições democráticas. Em especial, a adesão à democracia como valor universal, desvinculado dos resultados de curto e médio prazo dos governos, sofre um golpe importante quando confrontada com colocações de cunho antidemocrático ―o que sugere a fragilidade de enraizamento dos valores democráticos mesmo entre aqueles que fazem o cotidiano dos partidos políticos.
Quando provocados pela afirmação de que “por vias democráticas, as transformações que o Brasil quer não acontecerão na velocidade que desejamos”, houve um aumento de 51% na proporção dos entrevistados que acreditam que a democracia nem sempre é a melhor forma de governo. Nesse cenário, a proporção de entrevistados que passam a discordar da democracia como melhor forma de governo salta de 20% para 30,3% dos filiados. Quando receberam mensagens com ataques à atuação de deputados e senadores ―acusados de cooperar com o presidente apenas em troca de recursos e cargos―, os filiados reagiram de modo inverso ao esperado, aumentando sua concordância em relação à lógica de coalizões (em 13%). O resultado sugere que os entrevistados não ignoram a necessidade de construção de pontes entre Executivo e Legislativo, e entendem a relevância que os recursos estatais (como emendas parlamentares e cargos na administração pública) possuem para o funcionamento das próprias estruturas partidárias e a sobrevivência de seus membros. A única vinheta que não apresentou efeito significativo foi a de ataques ao STF. De maneira geral, as afrontas não foram capazes de mudar a percepção espontânea dos filiados sobre a legitimidade do órgão de cúpula do Judiciário brasileiro. No entanto, vale destacar que a rejeição espontânea ao STF é relativamente alta entre os filiados, atingindo aproximadamente um terço dos entrevistados. A tabela abaixo resume esses resultados.
Com o objetivo de identificar como os ataques às instituições democráticas são recebidos entre filiados de acordo com seu posicionamento ideológico, dividimos os entrevistados em três grupos ―direita, centro e esquerda―, a partir de sua autodeclaração no questionário. Os resultados indicam que, à medida que caminhamos para a direita do espectro ideológico, elevam-se as proporções de filiados que aderem a valores antidemocráticos, questionando a legitimidade do STF, das coalizões partidárias, e da própria democracia como melhor forma de governo. Mais importante, no entanto, é a constatação de que as mensagens antidemocráticas afetam os filiados dos três grupos ideológicos.
Na tabela 2, a proporção de entrevistados que espontaneamente questionam a legitimidade do STF como elemento fundamental da democracia brasileira pode ser observada na primeira coluna (controle). A proporção dos que discordam da legitimidade do STF aumenta bastante conforme avançamos da esquerda em direção ao centro e direita. Na coluna seguinte (tratamento), é possível notar que os filiados de esquerda e direita reagem de maneiras distintas diante do ataque ao STF, sendo que os filiados de direita o repelem. Ainda assim, o percentual dos filiados que rejeitam a legitimidade democrática do órgão permanece bem maior à direita (43%), seguida do centro (33%) e, por último, dos entrevistados localizados à esquerda do espectro ideológico (25,8%).
Quando analisamos a percepção dos filiados sobre a afirmação da democracia como melhor forma de governo (tabela 3), nota-se que o ataque contido na vinheta reverbera entre os três grupos no mesmo sentido, aumentando as proporções de filiados que questionam os métodos democráticos. Os percentuais seguem o mesmo padrão ao longo da escala esquerda-centro-direita, tanto para o grupo em que realizamos a avaliação espontânea (respectivamente, 12,8%, 17,9% e 25%) quanto para o grupo que recebeu o estímulo que veicula um ataque à democracia (24,3%, 31,1% e 36,7%). Assim, os ataques afetam a adesão à democracia entre os membros dos partidos de modo generalizado.
Por fim, os filiados de esquerda são os que menos discordam da lógica de coalizões partidárias que orienta o sistema político brasileiro, com percentuais em torno de 38% nos grupos de controle e tratamento (tabela 4). De outro lado, 56,6% dos filiados de centro e 65,4% dos entrevistados de direita espontaneamente rejeitam as coalizões partidárias. Nesse quesito, é importante salientar que os entrevistados que se posicionaram ao centro e à direita não recebem bem a vinheta que acusa deputados e senadores de cooperar com o presidente apenas quando há liberação de recursos. Os dois grupos repelem o ataque, diminuindo as proporções de entrevistados que discordam da lógica de coalizões; ainda assim, as proporções permanecem elevadas, e acima da verificada para os filiados de esquerda.
Esses resultados iniciais ―principalmente os relativos à corrosão do apoio à democracia― acendem um sinal de alerta sobre os impactos da radicalização e polarização entre as bases da política no Brasil, sensivelmente influenciadas pelo conturbado ambiente político que marcou a ascensão de uma liderança de extrema direita à Presidência da República. Em um cenário de acirramento e polarização crescentes entre os Poderes e agentes políticos, no qual intervenções, rupturas e golpes passam a frequentar o cardápio cotidiano de soluções para divergências; e frente a uma severa depressão econômica que se avizinha, que tende a polarizar e a acirrar os ânimos também ao nível do eleitorado, os sinais que vêm dos partidos são preocupantes. Se filiados e dirigentes das legendas, que fazem parte de um dos esteios da democracia representativa, questionam a própria legitimidade do regime em meio a um cenário difícil, o que esperar de outros atores menos envolvidos com as instituições e práticas democráticas?
O risco de contaminação de certas camadas da sociedade por discursos autoritários existe, e não deve ser subestimado. Isso mostra a importância de cortar pela raiz qualquer tipo de flerte irresponsável com saídas autoritárias, de recusar a normalização de mensagens proto-fascistas, e de evitar a adoção de improvisos institucionais (como a mudança do sistema de governo) como ferramenta de solução de impasses de curto prazo. Nenhuma democracia é capaz de sobreviver sem estabilidade nas regras do jogo, e sem a construção de soluções negociadas entre os atores políticos responsáveis e comprometidos com a saúde das instituições democráticas.
Pedro Floriano Ribeiro é professor de Ciência Política na Universidade Federal de São Carlos, e ex-professor visitante na Universidade de Cambridge e no Kellogg Institute da Universidade de Notre Dame (EUA).
Vinícius Silva Alves é doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília, ex-pesquisador visitante na Universidade da Califórnia, San Diego (EUA), e pesquisador de pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da UFSCar (bolsista CAPES).