Paulo Guedes e a liberdade de fazer escolhas ruins
Quem acha que a pauta do crise climática é "luxo”, inclusive na esquerda, não está entendendo nada
No Fórum Econômico Mundial, em Davos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que “as pessoas destroem o meio ambiente porque precisam comer”. Repercutiu mal imediatamente. O impacto negativo não decorre apenas do fato de que, como observaram vários especialistas, a afirmação é simplesmente falsa. O problema é, ainda, que a propagação desta falsidade pelo membro supostamente “técnico” do gabinete de Jair Bolsonaro parece confirmar, para uma comunidade internacional alarmada com o ritmo crescente de devastação da Amazônia, que as autoridades brasileiras continuam a incentivar esse processo tanto por ação quanto por omissão.
De um ministro da economia se deveria esperar, se não uma compreensão básica de fenômenos de escala, pelo menos um conhecimento da balança comercial. Paulo Guedes deve saber que o que cresce na Amazônia não é a pequena agricultura familiar, mas o agronegócio, a mineração e a indústria madeireira. São esses setores, afinal, que gozam de incentivos governamentais e têm os recursos necessários para fazer operações em grande escala numa região tão difícil. O que também significa que, sozinho, um empreendimento desses afeta uma área muito maior, e de maneira muito mais danosa e duradoura, que centenas de milhares de pequenos agricultores.
Guedes poderia sempre replicar que, à medida que esses setores geram empregos, a frase se confirma: os pobres dependem que grandes empresários destruam o meio ambiente para que possam ter emprego e, assim, comer. Mas esse argumento ignora, primeiro, que essas indústrias não geram empregos em quantidade, e muito menos qualidade, proporcional à destruição. Pior ainda, ele supõe que a única maneira de assegurar condições de subsistência, distribuição de renda, quiçá até redução da desigualdade, seja o crescimento contínuo nos moldes atuais. Para que o pobre fique um pouco menos pobre, é preciso sempre que alguém fique muito rico, e para que a riqueza do topo chegue na base, as rodas não podem parar de girar; é inevitável, então, desmatar a Amazônia —um raciocínio não muito distante, aliás, de vários ouvidos durante o Governo Dilma Rousseff.
Alternativas infernais
Um dado que chamou atenção na pesquisa Ibope de setembro passado foi que a aprovação de Bolsonaro subiu 9% na região Norte justamente no período em que o aumento das queimadas tornou-se escândalo mundial. Não seria esta a evidência de que a população local apoia desmatamento e que apenas uma minoria dos grandes centros urbanos se preocupa com os indígenas e a floresta? Não estaria provado que o meio ambiente é inimigo da pobreza e que os pobres desejam o “desenvolvimento”?
Esgrimido à direita e à esquerda, esse tipo de argumento sempre acompanhou a discussão ambiental, mas ele tem uma falha clara. É óbvio que as escolhas de diferentes classes e grupos sociais são mais ou menos determinadas por suas condições objetivas de vida. O problema é quando começamos a falar dessas condições como se fossem dados naturais impassíveis de modificação. Se esse fosse o caso, as pessoas estariam condenadas a sempre escolher da mesma maneira, e poderíamos esquecer qualquer possibilidade de uma solução para a crise ambiental. Afinal, encontrar uma solução supõe necessariamente mudar aquilo que os diferentes agentes atualmente escolhem, e isto só é possível mudando as escolhas à sua disposição. Mas isso exige que ponhamos as escolhas atualmente disponíveis em questão —o que exige, por sua vez, que ignoremos esse tipo de argumento.
Dadas as peculiaridades da região Norte, podemos supor que a pesquisa consultou predominantemente os habitantes das cidades. A maioria desses ou se beneficiam diretamente das queimadas (são proprietários ou pretendem sê-lo, estão integrados às cadeias produtivas extrativas ou pretendem estar); ou não são nem prejudicados nem beneficiados diretamente, mas legitimamente desejam serviços públicos, oportunidades econômicas e uma série de outras coisas historicamente codificadas como “progresso”. Como o “progresso” sempre lhes foi apresentado como um pacote completo, desde sempre eles entenderam que a única maneira de alcançar esses benefícios é através do “crescimento econômico”, que implicaria necessariamente a exploração em grande escala da floresta, a formação de latifúndios, a violência contra indígenas e camponeses. Se eles desejam ter x (que é bom), é preciso que haja y (que é ruim).
É essa naturalização de más escolhas —ou você tem y, que é ruim, ou você não tem x, o que também é ruim— que Isabelle Stengers e Philippe Pignarre chamaram em seu livro La Sorcellerie Capitaliste [A Feitiçaria Capitalista] de “alternativa infernal”. Intrínseca ao capitalismo, ela mina a própria possibilidade da política. Mina a política, claro, porque retira a possibilidade de discutir as premissas do problema —por que as opções seriam apenas essas e não, por exemplo, a não-concentração de terras e o fim dos latifúndios?— e faz com que as pessoas “escolham” sempre com a faca no pescoço. É “a bolsa ou a vida”, em todos os sentidos, a cada vez.
Stengers e Pignarre ressaltam, contudo, que essa não é uma simples “mentira” que o capitalismo vende para as pessoas. As alternativas infernais têm a ver com a distribuição objetiva de incentivos econômicos e “vitais” que o mercado produz. Ou seja: afirmar que as coisas poderiam ser diferentes pode ser importante, mas não é suficiente para dar fim às alternativas infernais. Sem modificar essa distribuição objetiva de incentivos, é até possível convencer as pessoas que existe a esperança de um outro mundo; mas essa esperança, como diria Kafka, não será para elas. Porque neste mundo tal como ele efetivamente é, suas escolhas seguirão sendo determinadas por uma estrutura perversa de incentivos e continuarão sendo, em última análise —e com tanto mais força quanto mais pobres elas forem— “a bolsa ou a vida”.
O segredo da liberdade é a coerção
Desde o nascimento do capitalismo, os dois caminhos encontrados para modificar a distribuição de incentivos foram a ação dos movimentos sociais e do Estado, essa última frequentemente vindo estabilizar, para bem ou para mal, as conquistas dos primeiros. Isso significa, por exemplo, impor limites à concentração de renda e de propriedade, de modo a manter sob controle a capacidade de alguns poucos atores influírem nas escolhas de todos os outros; um exemplo seria algo comum durante boa parte do século 20, a legislação antimonopólio. Mas significa, sobretudo, diminuir a coerção a que os indivíduos estão expostos, aumentando sua liberdade de escolha e, com isso, diminuindo o poder do capital sobre suas vidas. A construção de um estado de bem-estar social não era outra coisa se não um projeto para realizar isso.
Se o capitalismo tem o poder de nos fazer escolher coisas danosas para nós, é porque ele tem por fundamento uma coerção: ou você trabalha —e quem decide as condições em que se trabalha é o mercado—, ou você não come. Todas nossas escolhas “livres” acontecem sobre o pano de fundo deste mecanismo coercitivo e mais uma série de condições que não escolhemos. Esse é o segredo da “liberdade” propalada pelos liberais. Liberais inteligentes, é claro, entendem perfeitamente bem que, quando falam de escolha racional, estão falando de uma pequena zona de autonomia no topo de uma pirâmide de constrangimentos heteronômicos. É por isto que, para alguém como John Rawls, a defesa da liberdade e de certos tipos de intervenção estatal não só não eram mutuamente contraditórias, mas se implicavam logicamente. Infelizmente, a maioria dos liberais que populam nosso debate público parece tomar isto como desculpa para fazer de conta que o topo da pirâmide flutua no ar. É assim que se acaba discutindo o direito de vender os próprios órgãos sem qualquer questionamento sobre o mundo em que alguém optaria por vender o rim para sobreviver.
Não são apenas os trabalhadores que têm suas escolhas limitadas pela estrutura de incentivos existente. Também o capital tende sempre a ir aonde estão os melhores incentivos; e esses sempre serão, como resumiu o sociólogo Jason W. Moore, mão-de-obra e natureza baratas. É exatamente por isso, aliás, que o crescimento econômico nas atuais condições é cada vez mais incompatível com a sobrevivência da espécie humana na Terra. E se o capitalismo consegue nos tornar cúmplices de sua própria reprodução mesmo quando esta ameaça nossa sobrevivência como espécie, isto é, finalmente, porque a distribuição de incentivos existente não nos oferece muitas opções de vida que não envolvam nos matarmos —pelo menos não agora.
Para que indivíduos normais deixem de ser cúmplices dessa insanidade, é preciso libertá-los das alternativas infernais —e isso só é possível diminuindo a coerção a que eles estão expostos. Logo: não há como separar a luta ambiental da luta pela ampliação dos direitos e da rede de segurança social que protege os trabalhadores. A recíproca também é verdadeira, na medida em que a deterioração generalizada das condições de vida causada pelo aquecimento global só fará aumentar o grau de coerção a que sobretudo os mais pobres estão submetidos. Ou seja: também não dá para separar a luta para aumentar a esfera de liberdade dos trabalhadores da luta ambiental.
Quem tem, tem método
Quem acha que a pauta do aquecimento global é "luxo” não está, portanto, entendendo nada. Ela pode ser um “luxo”, sim, no sentido de que quanto mais sujeitos à coerção, menos tempo e espaço os indivíduos terão para se preocupar com as ramificações de suas escolhas imediatas. Mas não apenas são os mais coagidos justamente os primeiros e maiores afetados pelo aquecimento global, como aquilo que está em jogo é justamente uma luta pela transformação da distribuição de incentivos —e, portanto, de liberdade— atualmente existente.
É por isso que chama atenção que parte da esquerda se junte à extrema direita para denunciar os “privilégios” de quem se mobiliza em torno da questão ambiental ou reafirmar a ideia de que esta seria um “luxo”. Quem faz isso na esquerda pode acreditar sinceramente que está fazendo economia política ou defendendo os trabalhadores. Infelizmente, porém, está apenas reproduzindo o senso comum e contribuindo para naturalizar as alternativas infernais que o capitalismo nos impõe.
Do outro lado, porém, não há dúvida que o apelo ao bem-estar dos mais pobres é meramente cínico e disfarça uma compreensão bastante clara da situação. Paulo Guedes sabe muito bem quem está desmatando a Amazônia e de quem são os interesses que defende. O mesmo vale para a ação do Governo Bolsonaro em espalhar teorias da conspiração sobre o aquecimento global. Como disse Naomi Klein, se algumas das empresas mais poderosas do mundo consideram a luta ambiental a maior ameaça existente ao status quo e gastam fortunas para apresentá-la como um grande complô globalista, não é porque sejam paranoicos ou estúpidos: é porque estão prestando atenção.
Rodrigo Guimarães Nunes é professor de filosofia moderna e contemporânea na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de Organisation of the Organisationless: Collective Action after Networks. Seu novo livro, Beyond the Horizontal. Rethinking the Question of Organisation, sairá em breve pela editora inglesa Verso. Twitter: @orangoquango
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