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Coluna
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O que a crise chilena significa para a democracia latino-americana

Crise traz graves riscos para o Chile, mas também oportunidade única de consertar seus principais problemas e de se tornar uma inspiração para o resto da região

Oliver Stuenkel
Chilenos protestam no dia 28 de novembro, em Santiago. / Reuters
Chilenos protestam no dia 28 de novembro, em Santiago. / ReutersREUTERS

A onda de protestos que varreu a América Latina nos últimos meses, atingindo países como o Equador, Haiti, Honduras, Nicarágua, Bolívia, Chile e Colômbia, gerou uma demanda por teorias que oferecessem explicações fáceis para o surgimento de uma instabilidade política que há décadas não se via no continente. Por que tantas pessoas foram às ruas ao mesmo tempo, e para onde mais os protestos se alastrarão? Embora haja algumas semelhanças — entre elas uma sensação por parte de manifestantes em vários países de que o sistema político não é capaz de atender demandas sociais —, a busca por uma explicação única nos faz negligenciar lições importantes que cada uma dessas crises pode oferecer.

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De todas as manifestações que vêm ocorrendo na região, o caso chileno se destaca. Enquanto a instabilidade social em países como Nicarágua, Bolívia, Honduras e Equador era de certo modo previsível e está diretamente ligada à crise econômica ou à erosão dessas democracias, os protestos chilenos parecem mais surpreendentes, difíceis de caracterizar e complexos de resolver — e eles já se arrastam há mais de cinquenta dias. Essas manifestações deram início a um novo capítulo na história chilena: marcado para abril de 2020, o plebiscito sobre a criação de uma assembleia constituinte será o evento político mais importante do país desde a sua redemocratização, há trinta anos.

A relevância da convulsão social chilena ultrapassa suas fronteiras, e terá um impacto importante no debate sobre o futuro da democracia na América Latina. Se, ao longo dos próximos anos, o Chile conseguir preservar os elementos positivos de seu modelo político e econômico e consertar seus principais problemas — por exemplo, criando uma economia social de mercado competitiva e com fortes elementos de equidade social —, pode se tornar uma inspiração para o resto da região. Se fracassar, abrirá um precedente altamente preocupante para a América Latina. Afinal, o Chile é, em vários aspectos, um país bem-posicionado para articular uma solução, considerando suas instituições relativamente consolidadas, sua forte sociedade civil, imprensa livre e desempenho econômico sólido ao longo dos últimos anos.

Os obstáculos, porém, são tremendos, e geralmente subestimados por observadores internacionais, que tendem a ter uma imagem excessivamente positiva do Chile, em parte devido a uma narrativa idealizada, promovida por veículos liberais como o Financial Times e a The Economist. Durante uma visita recente a Santiago, quase todos meus interlocutores — políticos de esquerda e de direita, diplomatas, acadêmicos e ativistas — me disseram que a reputação internacional do país era melhor do que a realidade. “O PIB não diz tudo”, comentou um deles.

Se o Chile conseguir preservar os elementos positivos de seu modelo político e econômico e consertar seus principais problemas, pode se tornar uma inspiração para o resto da região

De fato, há muitos motivos para ser pessimista em relação ao Chile, e para acreditar que o país entrará em seu momento mais difícil nos últimos trinta anos. Tudo indica que a crise terá um impacto negativo sobre o crescimento econômico. Estima-se que em torno de meio milhão de chilenos vão perder seus empregos, e investidores internacionais dificilmente apostarão no país antes que a nova Constituição lhes dê uma noção melhor de qual será o modelo econômico daqui para frente. No entanto, fato é que a nova Constituição só será aprovada daqui a dois anos, na melhor das hipóteses — um prazo que parece longo demais para os milhares de chilenos de vão cair na pobreza nos próximos meses. “Temos pensado em sair do país para fugir da crise”, me disse um jornalista. “Mas sair do Chile para morar em um outro país latino-americano é como ir para uma cabine melhor no Titanic”.

Políticos da extrema-direita enxergam uma oportunidade no caos. Em vários momentos durante as minhas conversas, um clima pré-Bolsonaro instalou-se no ar. Embora ainda seja visto como uma chance remota, é possível que um cenário de colapso econômico e preocupação do eleitorado conservador com a segurança pública ofereça uma chance de ouro para candidatos nostálgicos do autoritarismo, como José Antonio Kast, caso eles se deparem com uma esquerda dividida e sem propostas convincentes para lidar com a crise econômica e com a sensação de insegurança.

Políticos como Kast se beneficiam do fato de que, após quase dois meses de protestos, o presidente Piñera ainda não tem conseguido restabelecer a ordem pública, ameaçada por grupos violentos que nada têm a ver com a maioria dos manifestantes. As Forças Armadas se recusaram a ocupar as ruas sem uma garantia de que os soldados não seriam processados por eventuais violações aos Direitos Humanos. Se o plebiscito sobre a assembleia constituinte fosse hoje, provavelmente teria de ser cancelado por falta de segurança — a polícia não teria como proteger as urnas. Com mais de 20 mortos e 2.000 feridos durante as manifestações, não está claro como os Carabineros de Chile, até recentemente uma instituição relativamente respeitada, vão recuperar a confiança da população. “Acho que a polícia terá que mudar de nome, mudar a cor dos uniformes, fazer um novo começo”, diz um político aposentado.

É possível que um cenário de colapso econômico e preocupação do eleitorado conservador com a segurança pública ofereça uma chance de ouro para candidatos nostálgicos do autoritarismo no Chile

Diante disso, o presidente Piñera se vê obrigado a implementar medidas que passou toda a sua carreira política combatendo, como incrementar os gastos públicos e organizar uma nova constituinte. Sua taxa de aprovação — que caiu de 33 para 10% desde o início das manifestações, em outubro — dificilmente vai se recuperar. Hoje, a esquerda o enxerga como símbolo de um sistema injusto e abusivo. Já a direita o acusa de ter sido cooptado pela esquerda. Justo quando o país mais precisava de uma liderança respeitada e capaz de projetar estabilidade, há um vácuo de poder.

Apesar de tudo isso, a crise oferece uma oportunidade histórica para o Chile. Vários representantes da elite econômica, política e intelectual admitem abertamente que fracassaram ao não preverem que manifestações desse tipo poderiam eclodir, e ao não dimensionarem a frustração que se acumulava em parte da população. Ao longo das últimas semanas, surgiram debates públicos inéditos sobre temas como preconceito de classe, misoginia, desigualdade, violência policial, serviços públicos e previdências insuficientes, privilégios e impunidade das elites, sobre a percepção de injustiça institucionalizada e de falta de solidariedade na sociedade chilena, levantando discussões fascinantes sobre que tipo de país os chilenos querem. A canção chilena “O estuprador é você” — que virou hino global de protestos se opondo à violência contra as mulheres — simboliza a transformação pela qual o país está passando. O fato de que, mesmo após cinquenta dias de protestos, a maioria da população ainda apoia os manifestantes, mostra que há um profundo desejo de mudança.

Há um risco de que forças políticas radicais preencham o vácuo de poder que surgiu no Chile, e não será fácil proteger o contencioso processo de elaborar uma nova Constituição em meio a tanta incerteza política e econômica. Porém, a crise também abre caminho para criar um modelo melhor de sociedade. E o resultado desse processo terá implicações importantes para o debate regional sobre o futuro da democracia na América Latina.

Oliver Stuenkel: Oliver Stuenkel é professor adjunto de Relações Internacionais na FGV em São Paulo. É o autor de O Mundo Pós-Ocidental (Zahar) e BRICS e o Futuro da Ordem Global (Paz e Terra). Twitter: @oliverstuenkel

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