_
_
_
_
PEDRA DE TOQUE
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O enigma chileno

A onda de protestos contra o Governo de Piñera é uma mobilização das classes médias, como a que agita boa parte da Europa, e tem pouco ou nada a ver com as erupções latino-americanas dos que se sentem excluídos do sistema

Mario Vargas Llosa
FERNANDO VICENTE

Dentro da catastrófica quinzena que foi esta para a América Latina –derrota de Macri e retorno do peronismo com a senhora Kirchner na Argentina, fraude escandalosa nas eleições bolivianas que permitirá ao demagogo Evo Morales se eternizar no poder, agitações revolucionárias dos indígenas no Equador–, há um fato misterioso e surpreendente que me nego a emparelhar com os mencionados: a violenta explosão social no Chile contra a alta dos bilhetes do metrô, os saques e a destruição, os vinte mortos, os milhares de presos e, por último, a manifestação de um milhão de pessoas nas ruas protestando contra o Governo de Sebastián Piñera.

Outros artigos do autor

Por que misterioso e surpreendente? Por uma razão muito objetiva: o Chile é o único país latino-americano que travou uma batalha eficaz contra o subdesenvolvimento e cresceu nestes anos de maneira assombrosa. Embora eu saiba que os relatórios internacionais não comovem ninguém, recordemos que a renda per capita chilena é de 15 mil dólares anuais (e em poder aquisitivo é de 23 mil dólares, segundo órgãos como o Banco Mundial). O Chile acabou com a pobreza extrema e em nenhuma outra nação latino-americana tantos setores populares passaram a fazer parte das classes médias. Goza de pleno emprego, e os investimentos estrangeiros e o desenvolvimento notável de seu empresariado e seus técnicos fizeram com que seu nível de vida subisse velozmente, deixando muito para trás os demais países da região. No ano passado viajei pelo interior chileno e fiquei maravilhado ao ver o progresso que se manifestava em toda parte: os lugares esquecidos de trinta anos atrás são hoje cidades pujantes, modernas e com nível de vida muito alto, levando em conta os padrões do Terceiro Mundo.

Por isso o Chile quase já deixou de ser um país subdesenvolvido e está mais perto do Primeiro Mundo que do Terceiro. Isto não se deve à ditadura feroz do general Pinochet. Deve-se ao resultado do referendo de 31 anos atrás com o qual o povo chileno pôs um ponto final à ditadura (e em que, além do mais, Piñera fez campanha contra Pinochet) e ao consenso entre a esquerda e a direita para manter uma política econômica que trouxe gigantescos progressos ao país. Em 29 anos de democracia a direita só governou cinco anos e a esquerda –ou seja, a Concertação–, 24. Não é descabido afirmar, portanto, que a esquerda contribuiu mais que ninguém para que aquela política, de defesa da propriedade e das empresas privadas, o estímulo aos investimentos estrangeiros, a integração do país nos mercados mundiais e, claro, as eleições livres e a liberdade de expressão, tivessem levado ao extraordinário desenvolvimento do Chile. Um progresso de verdade, não só econômico, como também ao mesmo tempo político e social.

A esquerda contribui para um progresso de verdade, não só econômico, como também ao mesmo tempo político e social

Como explicar, então, o ocorrido? Para entender é imprescindível dissociar o que se passou no Chile do levantamento camponês equatoriano e das desordens bolivianas pela fraude eleitoral. A que comparar, então, a explosão chilena? Ao movimento francês dos coletes amarelos, antes melhor, e ao grande mal-estar que há na Europa denunciando que a globalização aumentou as diferenças entre pobres e ricos de modo vertiginoso e pedindo uma ação do Estado que a freie. É uma mobilização das classes médias, como a que agita boa parte da Europa, e tem pouco ou nada a ver com as erupções latino-americanas dos que se sentem excluídos do sistema. No Chile ninguém está excluído do sistema, embora, sem dúvida, a disparidade entre os que têm e os que mal começam a ter algo seja grande. Mas esta distância se reduziu muito nos últimos anos.

Ainda não existe uma educação pública de primeiro nível, nem uma saúde que concorra com sucesso com a privada, nem aposentadorias que cresçam no ritmo dos padrões de vida

O que falhou, então? Acredito que um aspecto fundamental do desenvolvimento democrático que os liberais postulamos: a igualdade de oportunidades, a mobilidade social. Esta última existe no Chile, mas não de maneira tão eficaz a ponto de frear a impaciência, perfeitamente compreensível, daqueles que passaram a fazer parte da classe média e aspiram a progredir mais e mais graças a seus esforços. Ainda não existe uma educação pública de primeiro nível, nem uma saúde que concorra com sucesso com a privada, nem aposentadorias que cresçam no ritmo dos padrões de vida. Este não é um problema chileno, mas algo que o Chile compartilha com os países mais avançados do mundo livre. Uma sociedade admite as diferenças econômicas, os distintos níveis de vida, só quando todos têm a sensação de que o sistema, precisamente pelo quanto é aberto, permite em cada geração que haja progressos individuais e familiares notáveis, ou seja, que o êxito –ou o fracasso– esteja no destino de todos. E que isso se deva ao esforço e à contribuição feita ao conjunto da sociedade, não ao privilégio de uma pequena minoria. Esta é, provavelmente, a matéria pendente no progresso chileno, como sustenta, em um inteligente ensaio, o colombiano Carlos Granés, cujas opiniões em grande parte compartilho

A obrigação nesta crise do Governo chileno não é, portanto, de dar volta atrás em suas políticas econômicas, como pedem alguns enlouquecidos que gostariam que o Chile retrocedesse até se tornar uma segunda Venezuela, mas de completá-las e enriquecê-las com reformas na educação pública, na saúde e nas aposentadorias até dar ao grosso da população chilena –que em toda sua história nunca esteve melhor que agora– a sensação de que o desenvolvimento inclui também essa igualdade de oportunidades indispensável em um país que escolheu a legalidade e a liberdade, e rejeitou o autoritarismo. A Justiça tem que estar no coração da democracia e todos têm de sentir que a sociedade livre premia os esforços, e não as conexões e os pistolões.

O segundo homem da “revolução venezuelana”, o tenente Diosdado Cabello, teve a desfaçatez de dizer que todas as mobilizações e tumultos latino-americanos se devem a que um “terremoto chavista” está soprando sobre o continente. Não parece ter se inteirado de que quatro milhões e meio de venezuelanos fugiram de seu país para não morrer de fome, porque na Venezuela socialista destes dias só comem como se deve quem está no poder e seus comparsas, ou seja, aqueles que roubam, traficam e desfrutam dos típicos privilégios que as ditaduras e extrema esquerda (e as de direita, com frequência) concedem a seus súditos submissos. Não é impossível que agitadores venezuelanos, enviados por Maduro, tenham turvado e agravado as reivindicações dos indígenas equatorianos, e até dado uma mão a Cristina Kirchner em seu retorno ao poder, meio oculta sob o guarda-chuva do presidente Fernández, mas, no Chile, certamente que não. Que na cúpula venezuelana celebrem com champanhe francês as dores de cabeça do Governo de Piñera, dá-se como certo. Mas que seja o motor da revolta, é inconcebível, por mais que tenha sido justo a meninada quem queimou vinte e nove estações de metrô de Santiago e fez pichações em favor do socialismo do século XXI (o paradoxal é que esses moleques nem sequer pagam a passagem do metrô: sua carteirinha estudantil os exclui desse expediente).

Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas reservados a Edições EL PAÍS, SL, 2019. © Mario Vargas Llosa, 2019.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_