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O enigma das prisões secretas da China

O advogado de direitos humanos Chang Weiping, detido sob investigação, tem sequelas físicas e mentais depois de mais de cinco meses no sistema de desaparecimento forçado conhecido como RSDL

Macarena Vidal Liy
Chang Weiping
O advogado Chang Weiping com a mulher, Chen Zijuan, e o filho em uma foto do perfil dela no Facebook.

Em confinamento solitário. Sem acesso a um advogado. Sem que sua família soubesse de seu paradeiro, além do fato de os agentes de segurança o terem levado. Submetido, denunciam os seus, a “torturas para extrair-lhe uma confissão”. O advogado chinês de direitos humanos Chang Weiping, especializado em casos de discriminação e defesa da liberdade de expressão, passou cinco meses e 16 dias, entre outubro de 2020 e abril deste ano, no que a legislação chinesa descreve e autoriza desde 2013 como Vigilância Residencial em Local Designado (RSDL na sigla em inglês). Era sua segunda vez nesse processo de detenção de nome tão anódino quanto temido entre os dissidentes chineses: aqueles que passaram por ele denunciam humilhações, maus-tratos e torturas físicas e psicológicas.

A RSDL foi aplicada na China a numerosos presos considerados especialmente problemáticos, por sua notoriedade ou por serem críticos —ou percebidos como críticos— do sistema. Passaram por ela empresários e estrelas de cinema como Fan Bingbing, investigada por fraude fiscal; dissidentes como Ai Weiwei, Liu Xiaobo e Xu Zhiyong; vários advogados de direitos humanos como o próprio Chang. O temor de que a tenista de elite Peng Shuai pudesse se ver nessa situação após denunciar abusos sexuais cometidos por um alto funcionário chinês provocou apelos da Associação de Tênis Feminino (WTA na sigla em inglês) e de atletas internacionais para esclarecer seu paradeiro. Depois de três semanas desaparecida, Peng surgiu em uma videoconferência nesta semana para dizer que estava “sã e salva”.

A organização de defesa de direitos humanos Safeguard Defenders, autora de um relatório recente sobre essa ferramenta, denuncia que seu uso se multiplicou desde que foi codificada em 2013 como resultado de uma emenda à Lei de Processo Penal na China. “Nossa análise mostra um dos sistemas de maior alcance, senão o de maior, de desaparecimentos forçados em todo o mundo”, afirmou a organização em uma carta às Nações Unidas. “A utilização da RSDL é, sem dúvida alguma, extensa e sistemática”, acrescenta a ONG, cujo fundador, o sueco Peter Dahlin, foi submetido ao procedimento em 2015.

Esse instrumento legaliza a prisão em um lugar secreto durante um período máximo teórico de seis meses, embora em algumas ocasiões o prazo tenha sido ultrapassado. Antecede a prisão formal e não há necessidade de um tribunal para aprová-lo. Segundo o Governo chinês, é imprescindível para defender a segurança nacional e o país garante o respeito aos direitos dos prisioneiros. Para os defensores dos direitos humanos é uma ferramenta contra os ativistas que viola os padrões internacionais e que, longe do escrutínio público, abre as portas a todo tipo de abusos físicos e psicológicos.

As proteções previstas na lei —acesso a um advogado, fiscalização por parte do Ministério Público— são, na prática, descartadas. A polícia pode invocar uma “exceção” se considerar que o detido representa um risco para a segurança nacional, explica o relatório da Safeguard Defenders, Locked Up: Inside China’s Secret RSDL Jails (Preso: Por Dentro das Prisões RSDL Secretas da China), que traz depoimentos de presos e familiares e examina os bancos de dados dos tribunais chineses.

Os pesquisadores dessa organização descobriram que em 2013 esse procedimento foi usado contra pelo menos 325 pessoas. Em 2020, contra mais de 5.800. No total, até julho de 2021, localizaram 22.845 casos em que os vereditos do tribunal aludem ao uso da RSDL antes do julgamento. Mas os números reais podem ser maiores —entre 38.000 e 57.000 pessoas podem ter passado por esse sistema, calcula a ONG—, já que os bancos de dados não incluem os casos que se considera que afetam a segurança nacional.

Esse instrumento, denuncia a ONG, “é frequentemente utilizado fora de seu propósito declarado, a fase de investigação de um ilícito, uma vez que uma proporção significativa nunca é formalmente presa”. Segundo seus cálculos, um terço das vítimas que identificou e entrevistou foi libertada sob fiança ou sem acusação. “Em seu lugar, a RSDL pode ser usada como ferramenta de intimidação e para obter depoimentos contra outros [suspeitos]”, aponta.

Tortura na ‘cadeira do tigre’

O caso de Chang é típico. Este jovem advogado foi preso pela primeira vez em 12 de janeiro de 2020, depois de ter participado, duas semanas antes, de uma reunião com um grupo de ativistas e advogados de direitos humanos na cidade de Xiamen. Após 10 dias em RSDL em um hotel na periferia de sua cidade natal (Baoji, província central de Shaanxi), foi colocado em liberdade. Em outubro daquele ano publicou um vídeo no YouTube no qual denunciava ter sofrido tortura durante sua detenção: foi obrigado a ficar o tempo todo sentado na cadeira do tigre –um artefato de metal que imobiliza o preso e acaba causando inchaço e fortes dores nas nádegas e nas pernas– e como sequela perdeu a sensibilidade em dois dedos da mão. Cinco dias depois da publicação do vídeo aconteceu sua segunda prisão e entrada na RSDL. Em abril foi acusado de “subversão contra o Estado”, crime que pode lhe custar a prisão perpétua.

Em setembro, já em prisão ordinária, pôde ver seu advogado pela primeira vez, 11 meses depois de ter sido levado por funcionários de segurança. Segundo contou ao seu advogado e sua mulher, a doutora em microbiologia Chen Zijuan, explica ao EL PAÍS, em suas duas detenções foi levado para o mesmo hotel em Baoji. Ali o esperava um quarto —diferente a cada vez— com superfícies acolchoadas e janelas lacradas para evitar que se machucasse. Na segunda prisão, o quarto tinha dimensões mínimas: cerca de 3x3 metros, dos quais metade era ocupada por funcionários de segurança que o interrogavam.

Ao longo dos cinco meses e 16 dias de sua segunda estada em RSDL, denuncia a mulher, o advogado foi submetido a várias torturas, maus-tratos e humilhações, inclusive a cadeira do tigre novamente. Sua mão esquerda também foi imobilizada durante dois meses seguidos. Era impedido de dormir e recebia apenas o mínimo necessário de comida e água.

“Só quando fazia o que os funcionários da segurança do Estado queriam é que melhorava a situação em relação a alimentação, sono e temperatura do quarto. Estavam provocando uma reação pavloviana, tornando-o obediente como um cachorro”, diz a microbiologista.

A situação afetou seu estado mental. “No terceiro mês em RSDL ficou paranoico, acreditava que todas as pessoas em sua vida tinham sido colocadas pelas autoridades para prejudicá-lo, inclusive sua mãe e eu. Na época, ele estava convencido de que essas suspeitas eram razoáveis. Conta que a tortura psicológica naquele quarto foi a coisa mais terrível para ele”.

Outras vítimas do procedimento relatam experiências semelhantes. Todos denunciam, no mínimo, maus-tratos psicológicos —inclusive ameaças contra suas famílias— em intermináveis sessões de interrogatório. Muitos relatam privação do sono ou alimentação insuficiente, obrigação de tomar medicamentos suspeitos ou de permanecer horas em posições dolorosas.

“Durante as sessões de interrogatório, se não dissesse o que queriam ouvir, me castigavam. Por exemplo, não me deixavam piscar. Obrigavam-me a sentar durante um longo tempo na cadeira do tigre ou a ficar de pé o dia todo na minha cela, mesmo quando estava fraco demais para ficar de pé e caía o tempo todo”, conta Yang Zhisun, ativista de direitos humanos preso em Pequim no fim de 2015, em um depoimento apresentado no relatório da Safeguard Defenders.

Os maus-tratos a Chang deixaram inúmeras sequelas, denuncia Chen. Seu marido, completamente saudável antes da prisão, agora sofre de sangue nas fezes, dificuldade de movimentos na coluna dorsal e hérnia de disco. “Antes ele podia dirigir 1.300 quilômetros, a distância entre Baoji e Shenzhen, meu local de trabalho, de uma só vez. E agora, depois de ter estado nas mãos da segurança, tem muitos problemas. Todos são consequência da longa imobilização”.

Chang está formalmente preso em Baoji à espera da conclusão de uma investigação sobre ele por parte da polícia, que está sendo prolongada em busca de provas suficientes para levá-lo a julgamento. “Em geral, quando o Ministério Público ordena prolongar uma investigação é porque as provas são insuficientes para levar uma pessoa a julgamento. Mas, em casos tão políticos [como o de Chang], os prolongamentos adicionais são uma maneira de prolongar sua prisão sub-repticiamente”, acrescenta sua esposa.

O jovem advogado não pode ver a mulher e o filho desde que foi levado, há mais de um ano. “As cartas que lhe escrevi foram lidas por seu defensor, não permitiram que ele as recebesse. Também escreveu cartas para mim, mas o centro de detenção não o autorizou a enviá-las para mim”, conta ela.

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