_
_
_
_

“Há uma maioria que apoia o presidente. O povo mandou tudo às favas e deu o poder a Bukele”

O vice-presidente de El Salvador, Félix Ulloa, diz que seu país está vivendo uma “revolução passiva”, que promove transformações “sem dar um tiro”

Felix Ulloa, vice-presidente de El Salvador, durante a entrevista concedida nesta segunda-feira na residência oficial da Embaixada do seu país em Madri.
Felix Ulloa, vice-presidente de El Salvador, durante a entrevista concedida nesta segunda-feira na residência oficial da Embaixada do seu país em Madri.Kike Para
Cecilia Ballesteros

O vice-presidente de El Salvador, Félix Ulloa (Chinameca, 70 anos), quer mudar a narrativa da mídia e dos organismos internacionais sobre os dois anos e meio de mandato do presidente Nayib Bukele, que ele considera distorcida. Em uma entrevista concedida nesta segunda-feira em Madri, ele negou que exista em seu país qualquer rumo autoritário ao estilo chavista, conforme apontaram Governos como o dos Estados Unidos e ONGs como a Human Rigths Watch (HRW). Este é um dos objetivos de uma viagem que o leva à Espanha depois de passar por Suécia, Bélgica e França, incluindo uma reunião em Estrasburgo com o Alto Representante da UE para a Política externa, Josep Borrell. Para esse advogado, filho de Félix Ulloa – o chamado reitor mártir da Universidade de El Salvador, assassinado pela ditadura em 1980 –, as polêmicas medidas adotadas por Bukele desde que a vitória do seu partido Novas Ideias (NI) nas eleições legislativas de março são apenas parte do processo de mudança em El Salvador. Entre essas medidas estão a substituição de magistrados do Tribunal Constitucional por outros afins, o afastamento de um terço dos juízes, a adoção do bitcoin como moeda corrente e um projeto de reforma constitucional que tem o próprio Ulloa como autor. “É uma revolução passiva, como dizia Gramsci, sem armas.”

Pergunta.O senhor conseguiu tranquilizar a União Europeia? Em maio, o próprio Borrell se mostrou preocupado com a situação do Estado de direito em El Salvador…

Resposta. Essa é uma palavra muito forte, porque não foi exatamente a UE que andou dando sinais muito fortes, como os que emitiu, isso sim, a Administração dos EUA.

P. Refere-se a Juan González, assessor para a América Latina do presidente Biden, que disse que estavam deslizando pela mesma ladeira autoritária que a Venezuela?

R. Isso esclarecemos a Borrell: que não havia esse rumo, que toda essa história que se contava de que Nayib [Bukele] queria se perpetuar no poder como Chávez não existia.

P. Então Bukele não vai se reeleger?

R. Ainda não tomou a decisão. Nossa Constituição, tal como está redigida atualmente, não permite a reeleição imediata, apenas depois de passado um tempo. O problema é que, tal como está redigida, esse período não fica claro. Por isso, no projeto que eu escrevi consta que a pessoa que exerce a presidência, se quiser se apresentar novamente, tem que esperar um período de um mandato, que são cinco anos. Mas o que havia dito o Tribunal Constitucional anterior? Para evitar que o presidente anterior voltasse a se apresentar, estabeleceu que eram dois mandatos, o que não era o que os constituintes tinham escrito. Essa redação foi interpretada de outra maneira pelo novo tribunal e diz que não é preciso esperar nenhum período, que o presidente pode se apresentar imediatamente. Qual é o problema? O problema é que um tribunal constitucional lhe diz que precisa esperar dois mandatos, e o novo que chega lhe diz que não tem que esperar nada. Onde está o problema? O problema é a redação do artigo, que não está clara. Se a legislação vigente for essa, é preciso cumpri-la. O presidente poderia se apresentar.

P. Governos e ONGs criticam que já não há separação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

R. Se você fizer essa leitura superficialmente, chega a essa conclusão. O presidente da República de El Salvador não tem capacidade nem poder para tirar magistrados do Supremo. É a Assembleia Legislativa que faz isso.

P. A qual, neste momento, está controlada pelo partido governante.

R. Há uma maioria que apoia o presidente, não é a assembleia anterior, que era totalmente hostil. Isso é uma realidade política e é a vontade do povo, o povo votou uma super maioria afim ao presidente porque viu o comportamento da assembleia anterior, na qual tudo era para bloquear o presidente. Bukele não fez 43 deputados, que é a maioria, fez a maioria absoluta. Um amigo me disse que esta é uma revolução popular. O povo mandou tudo às favas e deu todo o poder a Bukele. Interpretei isso mais como uma revolução passiva, ao estilo de Gramsci, essas grandes transformações que se dão sem violência, porque o que está sendo feito agora é o que se quis fazer nos anos oitenta, e agora as transformações estão sendo feitas sem disparar um tiro.

P. Há vozes que dizem que essa remoção dos juízes se deve apenas a razões políticas. Por sinal, o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, anunciou sanções contra esses novos magistrados do Tribunal Constitucional.

R. Não é verdade. O documento lido na assembleia para justificar por que os tiravam tinha 29 páginas, nas quais se relatavam as violações que estes juízes tinham cometido durante a pandemia e na sua aplicação de uma justiça seletiva. Se disserem que Bukele os afastou por razões políticas, eles estavam lá por razões políticas. Qual é a imagem que se apresenta de um líder jovem, disruptivo, porque não é nada tradicional? Já não queremos governantes filósofos, queremos homens que façam o que é preciso fazer. Dizem de Bukele o que diziam do presidente francês, Emmanuel Macron: que não tem ideologia, tem ideias.

P. A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol) e outros organismos estão alarmados pela situação da liberdade de expressão e de imprensa. Há quem fale em perseguição.

R. Cobrar impostos é perseguição?

P. O jornal digital El Faro, por exemplo, alega que as acusações de lavagem de dinheiro contra esse veículo e a posterior investigação se devem às suas críticas ao Governo.

R. Olha, se vitimizar é rentável. O El Faro quis se vitimizar quando sabe que tem um telhado de vidro muito grande, porque eles, sim, que estão organicamente vinculados a um projeto e a uma campanha anti-Bukele. Isso é notório em El Salvador. Os dois grandes jornais, a mesma coisa. Estão magoados. Quem foi se queixar à SIP? Os donos dos veículos foram fazer as queixas.

P. Expulsaram do país o editor mexicano do El Faro, Daniel Lizárraga...

R. Outra mentira. Entrou como turista, não tinha autorização de trabalho. Nunca a tirou.

P. Os assessores venezuelanos de Bukele dominam todas as instâncias. Eles têm autorização de trabalho?

R. Entendo que sim. Nem sequer os conheço. Se não tiverem, seria preciso aplicar a mesma norma. Agora, o que sabemos é que são da oposição venezuelana, de Leopoldo López, o que não tem lógica com serem acusados de chavismo. Ele reconheceu Juan Guaidó como presidente legítimo da Venezuela. O problema é que muitos intelectuais não conseguem etiquetar Bukele, não sabem se ele é de direita ou de esquerda, é o que acontece com eles com relação a esse garoto.

P. Houve três manifestações em dois meses contra Bukele, apesar da sua popularidade…

R. Eram contra o bitcoin…

P. Na primeira também se gritavam slogans como “Abaixo a ditadura”.

R. Nessa havia mais jornalistas que manifestantes.

P. El Salvador é o primeiro país a adotar o bitcoin como moeda nacional. Há pesquisas que dizem que a maioria dos quase sete milhões de salvadorenhos é contra, num país com 23% de pobres. Todos têm acesso a smartphones? Como está funcionando?

R. É contra porque meteram medo – os noticiários, a imprensa escrita, os grandes bancos e os intermediários. A Western Union vai perder 400 milhões por ano nas remessas. Você sabe quantos salvadorenhos têm conta em bitcoins? Três milhões. Sabe quantos têm contas bancárias? Quase ninguém. É verdade que 20% da população não tem acesso a um smartphone, mas o Governo capacitou 3.000 jovens para que fossem ajudar em todo o território as pessoas que não sabiam baixar o aplicativo, porque todos os maiores de 18 anos com documento de identidade podíamos sacar 30 dólares, e tinha gente que não sabia como. Mas o mundo vai por aí, a narrativa da mídia e dos bancos era que estávamos em alto risco, mas não há nenhum. Pode-se pagar com bitcoins nos postos de gasolina (os donos dos postos dão um desconto de 10 centavos), no supermercado, na farmácia…

P. O senhor paga com bitcoins?

R. Estive fora. Quando chegar, vou pagar. E não só isso: vou ver como minha conta aumentou...

P. Na legislação não está previsto o direito ao aborto nem o casamento homossexual…

R. Bukele disse que não o poria, mas ele não faz a Constituição. Na Constituição você não põe esses direitos. Pus no projeto que o Estado tem como origem e finalidade a pessoa humana, e que tem que garantir a vida em todas as suas formas, e que quando o direito do não nascido entrar em conflito com o da gestante, a lei deve resolver. Idem quanto ao casamento igualitário: o casamento é a base da família, e outras formas de uniões legais, sem dizer se aceitam-se ou não. Não sou a favor nem contra o aborto, isso é a legislação penal. Tenho vergonha de dizer isso, porque em El Salvador o aborto em qualquer de suas formas é penalizado.

P. Passaram-se 30 anos desde o final da guerra civil. Seu pai foi assassinado durante a ditadura. Como vê o passado e o futuro? Qual é a lição?

R. No golpe de Estado de 1979, eu estava na Espanha e retornei ao meu país. Fomos para pegar em armas contra a ditadura. Dez anos em guerra, 80.000 mortos, milhares de desaparecidos e exilados, e não conseguimos mudar essas estruturas do poder oligárquico, e então nós, sociais-democratas, saímos da FMLN [Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional], ficaram quase somente os comunistas, e eles foram cúmplices desses 30 anos de pós-guerra onde não só não avançamos, porque queríamos fundar um novo país. O país ficou pior: maras [quadrilhas], corrupção... Em dois anos, fizemos mudanças essenciais. Não podemos ficar ancorados ao passado. A Guerra Fria acabou e o muro de Berlim caiu. Estamos frente à prescrição de uma etapa histórica, e tomara que não retornemos.

P. O que se negociou com as maras em troca da pacificação do país?

R. Não sei o que se negociou e se se negociou. O que sei é que as maras cresceram com os governos da ARENA e da FMLN, e esses sim negociaram.

P. É verdade que o senhor não participa do círculo íntimo e familiar do presidente?

R. Isso é verdade. Não estou em nenhum círculo de poder, estou lá por uma casualidade da história, porque nem tinha me ocorrido.

P. Amigos salvadorenhos me dizem que o senhor é uma espécie de jedi que passou para o lado escuro da força...

R. A direita diz que estou colocando Bukele na esquerda, e a esquerda que Bukele está me metendo na direita. Isso é sinal de que estamos fazendo as coisas direito. É bem-vinda a crítica por esse lado.

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_