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O criptoSalvador, os primeiros dias de um país experimento

O país centro-americano revoluciona o mercado das criptomoedas ao colocar em vigor esta semana o bitcoin como moeda corrente legal e as reações variam tanto como o valor da divisa digital

A pequena loja de Roxana à beira-mar na praia El Zonte recebe Bitcoin desde esta semana.
A pequena loja de Roxana à beira-mar na praia El Zonte recebe Bitcoin desde esta semana.Víctor Peña
Jacobo García
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Por esses dias os hotéis mais caros da capital de El Salvador, mas também os pequenos hotéis para surfistas da costa, se encheram de jovens com sotaque norte-americano que chegaram para acompanhar de perto a aterrissagem da criptomoeda. Caminham como uma seita com camisetas com um B maiúsculo de cor laranja no peito. Às vezes o B gigante é seguido pela palavra bitcoin e em outras pela palavra Bukele, conscientes de que grande parte do sucesso da moeda depende do que acontecer no pequeno país centro-americano.

Ainda que para muitos especialistas Nayib Bukele está brincando de Monopólio com as finanças públicas, para os entusiastas da criptomoeda o presidente millenial de 40 anos se transformou em uma referência de coragem e audácia desde que Jack Mallers, criador da Strike, uma plataforma de pagamento de bitcoin, deu sua aprovação. Em 6 de junho, durante uma conferência em Miami, Mallers ―um jovem de 27 anos de boné, agasalho de rapper e tênis―, chorou diante de centenas de pessoas explicando todas as coisas boas que a criptomoeda pode fazer pelas crianças pobres. O principal momento do evento ocorreu quando, em uma mensagem gravada, Nayib Bukele anunciou que o bitcoin seria moeda legal enquanto o auditório rompia em aplausos e vivas de pé como se fosse uma partida de beisebol em que o batedor acaba de lançar a bola para fora do estádio. Poucos dias depois foi aprovada uma lei redigida em três páginas que muda completamente o rumo econômico de um dos países mais pobres do continente.

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Um surfista na praia de Puerto de La Libertad, lugar que se transformou atrativo para turistas graças ao uso da criptomoeda.
Um surfista na praia de Puerto de La Libertad, lugar que se transformou atrativo para turistas graças ao uso da criptomoeda. Víctor Peña

A três meses e 5.000 quilômetros de distância, Jorge Ovidio Ramírez, de 55 anos, vende leite de cabra recém-ordenhada no centro de San Salvador e o mais moderno que tem ao seu lado é o guarda-sol. Os últimos jovens de capuz e camisas de rapper que se aproximaram dele tentaram assaltá-lo. “Esse assunto não é para nós, pobres”, diz cético. E finaliza: “Ninguém dá dinheiro sem mais nem menos”. A alguns passos do pastor, na rua Arce, Yesenia Ríos vende sapatos: “Eu nem o telefone sei usar. É meu filho que me ensina. Eu pensava que essa moeda já funcionava em outros países, mas agora sei que somos os primeiros a usar isso. Vai saber no que esse senhor (Bukele) se baseou para colocar isso”.

O bitcoin, a criptomoeda de maior valor no mercado, foi criada em 2009 por Satoshi Nakamoto como uma forma de pagamento. Nakamoto também inventou a tecnologia blockchain que serve de suporte para gerir as transações em bitcoin. A moeda foi projetada para que suas operações sejam anônimas e privadas, o que a deixa fora do controle dos governos.

O pastor Jorge Ovidio com suas cabras no centro de San Salvador.
O pastor Jorge Ovidio com suas cabras no centro de San Salvador. Víctor Peña

El Salvador é a proveta perfeita para o experimento. Com 6,5 milhões de habitantes, 70% da população não tem conta bancária e a principal fonte de renda do país são as remessas que recebem de seus familiares nos Estados Unidos. Segundo Bukele, a chegada do bitcoin gerará emprego e a inclusão financeira de milhares de pessoas que estão fora da economia formal. “O bitcoin tem uma capitalização de mercado de 680 bilhões de dólares (3,5 trilhões de reais). Se 1% for investido em El Salvador aumentaria seu PIB em 25%”, argumentou no Twitter.

A Lei Bitcoin que entrou em vigor obriga qualquer comerciante a aceitar pagamentos nessa moeda, mas as declarações contraditórias do Governo causaram confusão. Na terça-feira, quando a aplicação foi lançada, Bukele deu a cada salvadorenho 30 dólares (156 reais) em bitcoins para incentivar seu uso e foram distribuídos por todo o país 200 caixas eletrônicos para convertê-los em dólares. Na sexta o bitcoin havia desvalorizado e os salvadorenhos já não tinham 30 dólares e sim 26 (135 reais), mas se esses mesmos salvadorenhos tivessem comprado em junho 1.000 dólares (5.215 reais) em bitcoin hoje teriam 1.280 dólares (6.675 reais).

Entre os especialistas há mais dúvidas do que certezas pelo comportamento de uma moeda que sobe e desce a grande velocidade em pouco tempo e que é recusada pelo Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a China, dentre outros. A cotação caiu de 52.000 a 30.000 dólares (271.000 a 156.000 reais) desde abril e está exposta a circunstâncias tão abstratas como Elon Musk, fundador da Tesla, expressar suas dúvidas sobre o dinheiro virtual para depois se retratar. Em um país que precisa do oxigênio dos órgãos internacionais para levar adiante suas contas públicas, a negação pode ser o afundamento definitivo da economia ou o motor que irá tirar El Salvador do atraso pelas mãos de um visionário.

Lady Drag protesta contra o Bitcoin, durante uma marcha realizada em San Salvador, na terça-feira 7 de setembro, dia em que entrou em vigência a nova moeda virtual.
Lady Drag protesta contra o Bitcoin, durante uma marcha realizada em San Salvador, na terça-feira 7 de setembro, dia em que entrou em vigência a nova moeda virtual. Víctor Peña

Nas ruas, a decisão de Bukele, o presidente latino-americano com o mais alto índice de popularidade, provocou os primeiros protestos após dois anos e meio de idílio. Pela primeira vez os salvadorenhos não veem com bons olhos o caminho tomado por seu presidente. Na semana passada quase mil pessoas protestaram contra o bitcoin e três pesquisas confirmaram que a maioria dos salvadorenhos é contra a moeda, mesmo esperando que seu uso fosse voluntário. Mas o velho pastor que vende a um dólar (5 reais) cada copo de leite recém-ordenhado também desconfia: “Dizem que seu uso é opcional, mas aconteceu a mesma coisa com as vacinas. No começo eram voluntárias e agora pedem sua comprovação para qualquer assunto”, argumenta.

Entre os que veem Bukele como um piromaníaco que joga com as contas públicas está Steve Hanke, professor de economia da universidade Johns Hopkins e ex-assessor de vários presidentes dos Estados Unidos. Segundo Hanke, que descreve Bukele como um “mentiroso compulsivo”, a aventura do bitcoin “terminará em um completo desastre” e dá como exemplo o artigo 7 da Lei Bitcoin que afirma que é de cumprimento obrigatório. “Depois ele mesmo diz: ‘Não se preocupem porque não vamos realmente fazer com que isso se cumpra’. Então ele tem uma lei de bitcoins e anuncia que não cumprirá um dos artigos. De modo que tudo depende de sua interpretação e isso é realmente o que ninguém gosta em economia”, diz em entrevista ao EL PAÍS.

Do outro lado, Emily Parker, editora-chefe do Coindesk, um dos veículos de imprensa especializados em criptomoedas, defende que a chegada do bitcoin ―observada na região por vários países que acompanham a medida de perto― “pode ajudar a América Latina onde há baixos níveis de bancarização, assim como facilitar o envio de remessas de modo barato e rápido”. Sobre o impacto na comunidade bitcoin, Parker admite que está dividida. “Por um lado existem pessoas que acreditam que é uma vitória e um passo importante à globalização das criptomoedas e, por outro, há críticos que acham que viola o espírito com que ela surgiu ao obrigar sua utilização, porque é uma moeda descentralizada que nenhum Governo deve controlar”, responde ao EL PAÍS.

Roxana Valles no interior de seu negócio em que conta com dois sistemas diferentes de pagamento com bitcoin.
Roxana Valles no interior de seu negócio em que conta com dois sistemas diferentes de pagamento com bitcoin. Víctor Peña

Os usuários estão tão divididos quanto os especialistas. Deitada em uma esteira na entrada de sua loja, Roxana Valles, proprietária da La Zonteña, uma pequena loja de comestíveis localizada em El Zonte, a 45 minutos da capital, passa a tarde atendendo moradores sem se separar de seu telefone. A poucos metros do balcão quebram algumas das melhores ondas do mundo de acordo com os surfistas, e também está o primeiro caixa eletrônico do país que converte o bitcoin em dólar. “No começo do ano comprei 900 dólares (4.700 reais) em bitcoin e 26 dias depois ganhei 500 dólares (2.600 reais), de modo que saquei do caixa e pude investir em minha loja”, diz apontando uma prateleira cheia de batatas fritas. Três meses depois fiz o mesmo. Havia ganhado 500 dólares e recuperei o investimento. Agora já tenho 2.094 dólares (10.900 reais) economizados”, conta, e mostra seu telefone. Um dia como hoje às cinco da tarde vendeu quase 40 dólares (210 reais) em produtos que vão de um tomate a bolachas, e um terço dos compradores pagou em bitcoin. “E qual é a conclusão? Que vendo mais do que ela”, responde, assinalando a loja ao lado, vazia, onde sua vizinha espera que cheguem mais clientes. No tempo que dura a conversa sua moeda virtual subiu outros 15 centavos enquanto continua com as explicações em sua esteira.

Roxana Valles mostra a plataforma que utiliza para cobrar seus clientes em bitcoin.
Roxana Valles mostra a plataforma que utiliza para cobrar seus clientes em bitcoin.Víctor Peña

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