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O que fazer com o cadáver de um monstro chamado Abimael Guzmán

Peru debate se reduz a cinzas o cadáver do fundador do Sendero Luminoso ou o entrega à sua viúva

Um grupo de pessoas recorda as vítimas de Abimael Guzmán, em Lima, Peru, no dia 11 de setembro.
Um grupo de pessoas recorda as vítimas de Abimael Guzmán, em Lima, Peru, no dia 11 de setembro.Martin Mejia (AP)
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FILE PHOTO: Shining Path guerrrilla leader Abimael Guzman, seen in a jail after his capture in Peru, on September 24, 1992. REUTERS/Anibal Solimano/File Photo
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A morte não foi o final da controvérsia que cercou Abimael Guzmán durante toda a sua vida. Agora, o Peru debate o que fazer com o cadáver do fundador do grupo terrorista Sendero Luminoso, responsável pela morte de 35.000 pessoas entre 1980 e 2000. A Promotoria decidirá por esses dias se entrega seu corpo aos seus familiares ou o reduz diretamente a cinzas. O país teme que o local em que seu corpo possa ser enterrado se transforme em um lugar de peregrinação.

Guzmán, um líder ideológico que planejou nas sombras centenas de atentados, morreu no sábado aos 86 anos em uma prisão militar de segurança máxima em Lima. Estava preso desde 1992. Duas semanas depois de ter sido capturado foi exibido publicamente em uma jaula, vestido com uma roupa listrada. Não se sabe quase nada de sua vida entre as grades. A última notícia, que sua saúde havia piorado no começo de julho. A autoridade penitenciária comunicou à época que ele se recusava a comer e a ser enviado a um hospital, mas aceitou por recomendação de seu advogado. Após alguns dias hospitalizado, voltou ao presídio. Dois meses mais tarde, morreu por pneumonia.

Oficialmente, o cadáver de um preso é entregue aos seus familiares após um promotor investigar as causas da morte. Mas não estamos falando de um caso qualquer. Guzmán representa o mal no Peru. Suas ações terroristas são de uma frieza que assusta. Em uma ocasião mandou matar dezenas de pessoas a machadadas. A única familiar do morto é Elena Iparraguirre, esposa e número dois do Sendero Luminoso. Foram presos no mesmo dia. Ela continua presa. No domingo, uma amiga da viúva se apresentou com uma carta procuração na Terceira Promotoria de Callao para pedir que entreguem a ela os restos, ainda que tecnicamente deveria ter apresentado um mandato.

O Governo prefere que o corpo seja cremado para acabar com o assunto de uma vez por todas. O ministro da Justiça, Aníbal Torres, esclareceu que eles não têm atribuição sobre o caso, mas preferem que seja assim. “O Ministério Público deve analisar o ordenamento jurídico fazendo prevalecer a ordem pública e, desse modo, evitar que seja enterrado como qualquer outro preso, o que faria com que prestassem culto e homenagem a ele e isso seria crime de apologia ao terrorismo. Para isso deveria realizar a incineração do cadáver, para que encerremos definitivamente com isso”, comentou na rádio Exitosa.

Por outro lado, congressistas de oposição e líderes de opinião exigem que o Executivo aprove um decreto supremo para desaparecer com os restos de Guzmán. A parlamentar fujimorista Rosangela Barbarán rechaçou a ideia que os joguem no mar. Um ex-ministro do Interior do Governo de Ollanta Humala concordou com ela: “Não devem contaminar o mar de Grau com suas cinzas”, disse na terça-feira na emissora Radioprogramas José Luis Pérez Guadalupe, que também é especialista em assuntos penitenciários.

Em paralelo, na manhã de segunda-feira seis congressistas de partidos de direita foram à sede da Promotoria de Callao, onde está o cadáver de Guzmán desde sábado. Alguns deles espalharam no sábado a frase “Queremos ver o corpo”, enquanto no Facebook e aplicativos de mensagem algumas pessoas difundiam a versão de que um helicóptero havia levado Guzmán, vivo. A Promotoria comunicou a eles as diligências que realizou desde o envio do cadáver. Um dos porta-vozes da campanha de Keiko Fujimori sobre uma suposta fraude eleitoral também questionou a versão da morte de Guzmán, da mesma forma que políticos do partido Aprista. “Os peruanos começam a exigir que mostrem o corpo de Abimael Guzmán. Suspeitam que não é verdade que morreu e que este Governo o libertou”, tuitou Daniel Córdova, ex-candidato ao Congresso.

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Há alguns anos, como parte de um curso universitário sobre o corpo e a pessoa, a antropóloga María Eugenia Ulfe abordou com seus alunos o debate sobre o que aconteceria quando Abimael Guzmán falecesse. “Uma coisa que ficou clara para nós é que o Estado não estaria preparado para a situação, porque nunca tivemos um debate público sobre esses assuntos. Não há uma lei, um programa que saiba o que fazer com os que cumprem sua sentença”, diz a autora do livro Reparando mundos. Vítimas e Estado nos Andes peruanos, em que estuda as atrocidades que famílias peruanas sofreram cometidas pelo Sendero Luminoso.

“Vemos que a Promotoria e o Instituto Nacional Penitenciário estão agindo apegados à lei, mas por outro lado os políticos em Lima e nas redes vociferam sem parar um minuto para pensar e respeitar a dor alheia. Por exemplo, os que foram vítimas do Sendero Luminoso em Huanca Sancos, após a morte de Guzmán continuam com sua vida: o silêncio diz mais sobre o incomensurável da dor que o vociferar”, comenta Ulfe. “Os que gritam sobre o corpo de Guzmán fazem como ele, ‘incendiar a pradaria’. O silêncio e a cautela seriam necessários nesse momento porque o clima político está muito polarizado: não há espaços de diálogo”, diz a pesquisadora.

Gisela Ortiz, irmã de uma das vítimas do destacamento do Exército Colina —criado durante o Governo de Alberto Fujimori para sumir com opositores— comentou que a morte de Guzmán evidencia a falta de uma legislação pós-conflito. “Como Estado não identificamos esses vazios legais em 20 anos. Como se procede, quem decide? Há o mesmo vazio à restituição de corpos enterrados não identificados”, afirmou.

A própria promotora-geral, Zoraida Ávalos, reconheceu na segunda-feira o vazio legal: indicou que não há um marco normativo para que o Ministério Público ordene a incineração do cadáver de Guzmán, mas disse que o promotor decidirá considerando o impacto social da questão.

Como parte da controvérsia, os opositores do Governo pedem que o Executivo envie uma mensagem mais contundente após a morte do chefe terrorista. Frequentemente, durante a campanha, seus inimigos tentaram identificar Castillo com o terrorismo, somente pelo fato de ser de esquerda. No domingo, em um ato em Cajamarca, o presidente Pedro Castillo afirmou que seu Governo continuará “lutando contra o terrorismo”.

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