O que o golpe de Fujimori em 1992 ensina ao Brasil de 2020
Apoio da população peruana ao fechamento do Congresso só foi possível porque Fujimori promoveu uma sensação de medo necessária para justificar medidas excepcionais
Há 28 anos, em abril de 1992, o então presidente Alberto Fujimori ― eleito dois anos antes como outsider que prometia lutar contra o establishment político ― surpreendeu os peruanos com uma transmissão em cadeia nacional às 22h30 da noite. Analisou a situação do país e reclamou da “velha política”, da atitude obstrucionista do legislativo controlado pela oposição e do judiciário ― grupos que, ele alertava, se uniam para impedir a transformação do país e o êxito de sua gestão. Reclamou do “parlamentarismo anti-nacional” contaminado pelos “vícios do caciquismo e clientelismo”. A justiça politizada e corrupta, segundo ele, era responsável pela “inexplicável liberação” de narcotraficantes e terroristas, que desestabilizaram o país e impossibilitaram a construção de uma “democracia real.”
Fez uma pausa para tomar um gole d'água e anunciou calmamente que era necessário assumir uma “atitude excepcional” para promover a reconstrução nacional, que envolvia a suspensão do Congresso e da Constituição, a “reorganização total” do judiciário, do Ministério Público e da Controladoria Geral. Tanques cercaram o parlamento, e numerosos jornalistas e deputados foram presos ou sequestrados, entre eles os presidentes da Câmara e do Senado. Em momento dramático, o apresentador da Rádio Antena, emissora peruana, relatou ao vivo a entrada de policiais no estúdio e, antes de o sinal ser cortado, ainda chegou a pedir à população que se manifestasse contra o golpe de Estado. Em vão. Tinha início, naquele momento, a ditadura, marcada por violações sistemáticas de direitos humanos, censura aos jornais, um judiciário controlado pelo presidente, corrupção sistemática, isolamento internacional e um líder que tentou se perpetuar no poder.
Fujimori apostou tudo e ganhou: a maioria da população apoiou o golpe, e sua taxa de aprovação inicialmente subiu quando ele começou a governar por decreto. Apesar de sua condenação e prisão em 2008 por violações de direitos humanos, uma pesquisa de opinião em 2012 revelou que 47% dos peruanos acreditava que a ruptura constitucional foi necessária diante das ameaças que o Peru encarava naquela época ― sobretudo a atuação dos grupos guerrilheiros Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) e Sendero Luminoso. Não surpreende, portanto, que o golpe de Fujimori seja objeto de inspiração e admiração para líderes políticos com ambições autoritárias até hoje ― enquanto a maioria dos presidentes autoritários, como Chávez, Ortega e Erdogan, precisam de anos no poder para erodir a democracia, o peruano o conseguiu em apenas dois. O caso do Peru mostra que a resistência popular contra golpes é menor quando existe uma ameaça, real ou imaginária, assustadora para a população a ponto de ela estar disposta a abrir mão dos seus direitos políticos para livrar-se dela. O presidente peruano soube magistralmente alimentar o medo do caos para poder justificar o golpe como medida estabilizadora.
A arte do golpismo, portanto, consiste em convencer a maioria da população de que alguma ameaça é tão séria que medidas excepcionais ― leia-se, uma ruptura constitucional ― torna-se necessária, mesmo quando, como no caso peruano, há pouca evidência de que a dissolução do Congresso facilitou o combate contra o terrorismo. Pelo contrário. Por meio do golpe, Fujimori destruiu sua maior fonte de poder no combate às guerrilhas: sua legitimidade constitucional. Como o golpe nunca pode ser visto como uma iniciativa motivada pelo desejo de concentrar o poder, mas sempre como uma reação a algum problema supostamente grave, o primeiro passo de qualquer líder autoritário é a invenção e a promoção de ameaças.
Ao redor do mundo, líderes com ambições autoritárias adotam a mesma estratégia. Nos Estados Unidos, Donald Trump não se cansa de evocar as ameaças da China, do Islã e dos imigrantes. Na Hungria, Viktor Orbán há anos promove o medo na população em relação aos imigrantes, à União Europeia, aos gays e a George Soros. Na Venezuela, Chávez sempre alertava para a ameaça imperialista. No Brasil, o presidente Bolsonaro induz os seguidores a protestar contra as medidas de distanciamento social que, segundo ele, representam uma ameaça contra a liberdade, a economia ou mesmo a democracia. Por isso, os protestos contra as medidas de distanciamento social não são uma coincidência. Pelo contrário, são produto de uma estratégia sofisticada de indução de medo constante e mobilização contra um inimigo ― os governadores, o STF, a China, a OMS e o comunismo, como recentemente escreveu o chanceler Ernesto Araújo. Ante qualquer desafio que surgir em um país ― a imigração, a mudança global do clima, o desemprego, a globalização, uma pandemia, o aprendiz de autoritário se perguntará como ele poderá transformar a dificuldade em algo realmente assustador para grande parte da população.
A incitação da insegurança coletiva pela indução do medo é, portanto, tarefa básica de qualquer autoritário, para poder se projetar, no final das contas, como o salvador da pátria que protege a população das muitas ameaças, e justificar medidas excepcionais para supostamente defender o país. O maior medo de qualquer líder autoritário é ficar sem ameaça ou inimigo: sem circunstâncias excepcionais, não haverá apoio para medidas excepcionais. É por isso que a pandemia é uma grande oportunidade para muitos líderes com ambições autoritárias ao redor do mundo ― como na Hungria, onde o presidente aproveitou da crise sanitária para instaurar uma ditadura. Afinal, como Fujimori compreendeu há quase 30 anos, pessoas assustadas sentem mais necessidade de direção, proteção e ordem. Quando a população está profundamente insegura em relação ao futuro, tende a apoiar medidas que acredita, com ou sem razão, que a salvarão ― mesmo que isso signifique abrir mão dos seus direitos políticos.
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