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Um pé e uma mão por roubar um celular e 490 reais no Sudão

Sentença de amputação contra um jovem reacende os pedidos de abolição das leis islâmicas no país

Sentencia amputacion Sudan
Grupo de fiéis escuta o sermão de um imã no primeiro dos dois dias da festa do Sacrifício ou Eid Al-Adha, em 20 de julho, num subúrbio de Cartum.ASHRAF SHAZLY (AFP)

Em 18 de maio de 2020, ao redor das 10h30, o sudanês Ahmed Tabaqi, representante de vendas de uma empresa de refrigerantes, estacionou o carro em frente a uma mercearia no Mercado Central de Cartum para entregar um pedido. Logo depois foi abordado por um grupo de jovens que disseram que queriam ajudá-lo, o que ele recusou. Minutos depois, um dos indivíduos pegou um dos pacotes que Tabaqi transportava e, quando este o encarou, outro jovem lhe roubou uma sacola na qual levava 41.700 libras sudanesas (cerca de 490 reais) e um celular. Tabaqi não reagiu porque os membros do grupo portavam facas e facões.

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Por causa daquele incidente, em 3 de junho passado um tribunal penal de Cartum, a capital sudanesa, condenou Moaz Ismail, de 21 anos, à amputação de sua mão direita e de seu pé esquerdo, um castigo decorrente da lei islâmica e previsto no rigoroso código penal sudanês, assim como a uma compensação econômica. Além da brutal condenação, que se for consumada constituiria tortura, a decisão da corte reconhece que “não foi provado” o fato de que Ismail estivesse armado com uma faca nem que tenha levado os objetos roubados, segundo a sentença à qual este jornal teve acesso.

Os únicos fatos provados, de acordo com o juiz, é que o jovem estava com o  grupo envolvido no roubo e que parte do dinheiro roubado foi encontrada com ele ―dois elementos que o magistrado considera suficientes para condená-lo. Samir Makin, membro da equipe de assistência jurídica do jovem, defende a inocência de seu representado e ressalta o tempo exíguo em que o tribunal proferiu a sentença. O caso agora está nas mãos da Corte Suprema, que deverá examinar o veredito, afirma Mohamed Ezzat, outro membro da equipe de advogados.

A condenação de Ismail foi criticada por 25 grupos da sociedade civil sudanesa, que consideram que ela remete o país aos momentos mais obscuros de sua história. Num comunicado conjunto, acusam o Governo de transição de estar submetido a sentenças fundamentalistas, mantendo leis intimidatórias e desumanas e negligenciando uma reforma da jurisprudência religiosa para harmonizar crenças islâmicas e direitos humanos.

“[A condenação] é totalmente esperável porque o Governo de transição não realizou nenhuma mudança significativa na tipificação e na estrutura jurídica herdada dos tempos do ditador Omar [Al Bashir, deposto em 2019]”, afirma Hala Al Karib, diretora da Iniciativa Estratégica para Mulheres no Chifre da África (SIHA), uma das organizações que participam da campanha. “As punições corporais ―amputação, crucificação, açoitamento― todas essas punições cruéis, desumanas e degradantes continuam existindo”, acrescenta. “Por isso, era de se esperar que um juiz as utilizasse, sobretudo considerando que a maioria dos juízes continua fiel à ideologia do antigo regime.”

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A polêmica em torno da sentença de amputação contra Ismail ocorre em meio ao tenso processo que o Sudão atravessa à medida que aborda e revisa a herança legal do regime islamista de Al Bashir e seu antecessor, Gaafar al-Nimeiry, que governou entre 1969 e 1985. Em julho de 2020, o Governo de transição aprovou uma série de emendas legais que erodiram esse legado e expandiram timidamente as liberdades individuais no país, mas entre elas não figuram os castigos físicos, que se consolidaram. A revisão desse legado gera tensão entre uma parte da sociedade, que considera que as reformas não avançam rápido o suficiente, e os nostálgicos do velho regime.

A ativista Al Karib acredita que o Governo de transição reluta porque talvez não queira assumir a responsabilidade de realizar uma mudança fundamental, ou porque um setor do Executivo se identifique com partes da ideologia islamista do regime de Al Bashir. “Eles continuam falando que ratificarão a Convenção contra a Tortura [das Nações Unidas], o que exigiria mudanças na estrutura legal, mas não dão nenhum passo. Falaram em ratificar a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, embora com reservas muito sérias, mas nem sequer isso ocorreu”, observa. “Essas leis existem e podem ser utilizadas a qualquer momento.”

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