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Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

O impacto invisível da falta de acesso à água

O peso da busca por água limpa longe da segurança da própria comunidade recai de forma desproporcional sobre as mulheres

Mulheres paquistanesas lavam roupa em Lahore.
Mulheres paquistanesas lavam roupa em Lahore.ARIF ALI (AFP)
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Dois bilhões de pessoas consomem água de fontes contaminadas por dejetos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso significa que quase um terço da população do globo depende diariamente de água contaminada para sua sobrevivência, estando exposta a doenças como cólera, hepatite A e E, entre outras enfermidades. Para além de um risco à saúde, isso é um risco à dignidade humana.

Não fosse esse número suficientemente alarmante, Médicos Sem Fronteiras (MSF) encontra com frequência em seus projetos em mais de 70 países outras facetas da falta de acesso à água. Uma delas é a violência a que as pessoas estão sujeitas ao terem que se distanciar da segurança de suas comunidades para ter acesso a fontes de água limpa. Esse peso recai de forma desproporcional sobre as mulheres, que costumam ser as responsáveis por coletar água. Muitas vezes elas levam horas entre o percurso até o local onde vão buscar a água, o tempo para encher seus baldes e a jornada de retorno. Nesses trajetos, encontram-se extremamente vulneráveis a ataques e à violência sexual.

Na minha experiência com ajuda humanitária, escutei relatos de mulheres vítimas de estupros em situações como essas. Em Darfur, no Sudão, onde estive a trabalho com MSF em 2010, a questão da falta de acesso à água e da violência contra mulheres era aterradora. Na mesma região, apenas num período de quatro meses, entre outubro de 2004 e fevereiro de 2005, MSF atendeu 500 mulheres e meninas sobreviventes de violência sexual. A maioria relatou ter sofrido o ataque quando deixou suas aldeias para procurar lenha e água.

Casos como esse continuam a acontecer. Em março de 2018, 10 sobreviventes de violência sexual chegaram ao nosso hospital em Bossangoa, na República Centro-Africana. Elas contaram que estavam em um grupo maior buscando água e lavando roupas quando foram raptadas por homens armados. Por medo, só procuraram cuidados de saúde mais de 15 dias depois do ataque, um tempo muito longo para medidas de profilaxia pós-exposição ao HIV, por exemplo. São vidas vitimadas repetidas vezes pela falta de acesso a um recurso vital.

Em 2017, MSF gastou o equivalente a quase 13 milhões de dólares com material e equipamento para ações na área de água, higiene e saneamento. O impacto deste investimento se torna mais evidente quando analisado à luz de um estudo da OMS de 2012: para cada 1 dólar usado em saneamento, são economizados 5,50 dólares com gastos em cuidados de saúde. Embora a criação de infraestrutura de água e saneamento não esteja no cerne do trabalho de MSF, esse é muitas vezes um componente fundamental para conter ou evitar a propagação de doenças. Isso é especialmente verdade em crises humanitárias, em que o deslocamento forçado de pessoas as obriga a se aglomerarem em acampamentos improvisados, e em desastres naturais, quando a infraestrutura de sistemas hídricos é afetada.

Da mesma forma, o trabalho dos profissionais de água e saneamento é essencial para garantir acesso a água e latrinas em um ambiente seguro e bem iluminado, seja em áreas remotas ou em campos de refugiados. Assim, pessoas em situação de vulnerabilidade não precisam arriscar sua segurança para ter acesso de forma digna àquilo que é vital para todos os seres humanos.

Ana de Lemos é diretora-executiva de MSF-Brasil.

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