Cresce a tensão armada na fronteira entre Colômbia e Venezuela, com mortos e milhares de deslocados
Organizações de direitos humanos dos dois países pediram que as Nações Unidas designem um enviado especial para lidar com a crise na região fronteiriça do rio Arauca
No sul da Venezuela, às margens do rio Arauca, que marca a fronteira com a Colômbia, os combates não param. A área tem sido palco de fogo cruzado entre militares venezuelanos e grupos irregulares apontados como supostos dissidentes das FARC. Em meio ao sobrevoo de aviões militares, foram enviados blindados e tropas de reforço, além de policiais das questionadas Forças de Ações Especiais da Polícia Bolivariana. Na sexta-feira foram ouvidos mais uma vez bombardeios na área, segundo a Fundaredes, ONG que documentou a presença de grupos irregulares na fronteira.
Vladimir Padrino, o ministro da Defesa de Nicolás Maduro, contou 8 mortos em suas forças e pelo menos 34 soldados feridos por minas. Ele também anunciou que foram mortos nove combatentes irregulares, entre eles quatro membros de uma família que denuncia uma execução do lado colombiano da fronteira. Caracas diz ter capturado supostos membros do cartel mexicano de Sinaloa. Além disso, dois jornalistas e dois ativistas ficaram detidos durante 24 horas em um posto militar venezuelano. Milhares de pessoas foram deslocadas pela violência. Na Colômbia, no povoado fronteiriço de Arauquita, mais de 5.000 pessoas lotam abrigos e até um campo de futebol com barracas humanitárias.
Diálogo rompido
As relações historicamente tensas entre Venezuela e Colômbia, cuja centelha se acendeu na época de Hugo Chávez e Álvaro Uribe, entraram em ebulição devido aos problemas fronteiriços. Dezenas de organizações não-governamentais e membros da sociedade civil pediram, em um comunicado, que as Nações Unidas designem um enviado especial como mediador. “Colômbia e Venezuela não podem usar os acontecimentos de Apure e Arauca como desculpa para uma escalada das tensões”, assinalaram semanas atrás no comunicado, dirigido ao secretário-geral da ONU, António Guterres, que até agora não respondeu publicamente.
O chanceler venezuelano, Jorge Arreaza, chamou a Colômbia de “narco-Estado” e também pediu a intermediação das Nações Unidas para facilitar a comunicação binacional. “O território e a população nesse território colombiano não estão sob o controle desse Governo, certamente por conveniência, mas quem manda nesse setor é um grupo paramilitar, em um espaço guerrilheiro, as autodefesas, o paramilitarismo e outras combinações, com o denominador comum da indústria do narcotráfico”, disse em entrevista coletiva.
A vice-presidenta da Colômbia, Marta Lucía Ramírez, respondeu. “O regime de Maduro representa uma ameaça para a segurança regional”, afirmou, reiterando a acusação de suposta cumplicidade do regime venezuelano com o narcotráfico, as dissidências das FARC e a guerrilha do Exército de Libertação Nacional (ELN). “O que estamos vivendo é uma guerra entre mafiosos”, declarou. “O vizinho incômodo na região é a ditadura de Maduro.”
O escritório da alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, manifestou sua preocupação “com o grave impacto dos enfrentamentos, que têm feito com que milhares de residentes locais fujam da área através da fronteira; com as denúncias de execuções extrajudiciais; e com a detenção de jornalistas e defensores dos direitos humanos”. Uma missão de verificação internacional, formada por representantes da Alemanha, Brasil, Canadá, França e Reino Unido, visitou juntamente com o ministro colombiano da Defesa, Diego Molano, o povoado de Arauquita, repleto de refugiados desde 21 de março, quando começaram os confrontos. Enquanto isso, a perspectiva é a de uma perigosa escalada. O Palácio de Miraflores e a Casa de Nariño se acusam mutuamente de instigar um confronto militar.
Ruptura definitiva
A última vez que os presidentes da Venezuela e da Colômbia conversaram frente a frente foi em 11 de agosto de 2016. Juan Manuel Santos e Maduro, com suas equipes de Governo, sentaram-se no saguão com vista para o rio Caroní do Clube Macagua de Puerto Ordaz, no Estado de Bolívar, no sul da Venezuela. O encontro serviu para pôr fim a um impasse surgido um ano antes, quando Caracas decidiu fechar repentinamente a fronteira com a desculpa de evitar a passagem de supostos paramilitares para o lado venezuelano. Nessa operação militar, 20.000 colombianos residentes na Venezuela foram expulsos à força, e suas casas foram marcadas com um “D” para indicar que seriam demolidas. Na época, a Venezuela participava como avalista das negociações em Havana para os acordos de paz entre o Estado colombiano e a guerrilha das FARC, que foram assinados um mês depois daquele encontro.
Depois daquela reunião aparentemente relaxada, as tensões cresceram até o rompimento de 2018, com a mudança de Governo na Colômbia e a crise de legitimidade desencadeada pela reeleição de Maduro, não reconhecida pela comunidade internacional por suposta fraude, um ponto de inflexão na deriva autoritária da Venezuela. Em 2019, o apoio de Iván Duque ao interinado presidencial de Juan Guaidó −eles se reuniram duas vezes− levou ao rompimento definitivo das relações bilaterais. Quase dois milhões de venezuelanos emigrados ficaram então sem serviços consulares.
O conflito binacional ocorre em meio à prolongada crise institucional da Venezuela. Maduro reduziu sua margem de diálogo diplomático, acusado de cometer violações de direitos humanos e de bloquear negociações com a oposição. Duque dificilmente recuará em seu veto ao Governo chavista. É por isso que os pedidos de intermediação voltam uma e outra vez. “Sem cooperação entre Venezuela e Colômbia, a situação na fronteira vai piorar no curto prazo, com consequências dramáticas para as populações, e com o risco de escalar o confronto”, alertaram em um comunicado cerca de 60 ONGs colombianas e venezuelanas, assim como membros da sociedade civil dos dois países.
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Mais de cinco milhões de pessoas vivem dos dois lados da fronteira. Socorro Ramírez, ex-integrante da Comissão Presidencial de Integração e Assuntos Fronteiriços Colômbia-Venezuela (entre 2000 e 2018) e da organização Pontes de Cidadãos, assinala que a abertura das sete passagens fronteiriças − agora também bloqueadas pelo cordão sanitário da pandemia − deve ser o ponto de partida para destravar a crise. Outro aspecto fundamental é a mediação. “Os bons ofícios de Nações Unidas existiram em todos os conflitos”, disse Ramírez na quinta-feira em um fórum organizado pelo Grupo de Crise Internacional. Para ela, existem mecanismos para intervir nesta crise sem precisar passar pelo Conselho de Segurança da ONU, onde os fatores geopolíticos têm mais peso.
O aumento da violência na fronteira tem relação direta com o rompimento de relações, do qual se beneficiaram os grupos armados que controlam as passagens informais, insistiu Ramírez. A crise fronteiriça reduziu ao menor nível em 25 anos o intercâmbio comercial formal entre as duas nações, que em 2008 atingiu o pico de 7 bilhões de dólares (38 bilhões de reais), segundo os dados da Câmara de Integração Econômica Colombiano-Venezuelana. “Não é possível que não exista nenhum canal de comunicação entre dois países com essas interações”, acrescentou Ramírez no fórum.
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