A conexão Cidade do México-Buenos Aires-Moscou: como a Sputnik V decolou na América Latina

Vacina russa atravessa as linhas geopolíticas e ideológicas e abre caminho como uma das alternativas mais requisitadas para enfrentar a pandemia na região. No Brasil, Anvisa dá passo rumo ao uso emergencial

Profissionais de saúde são vacinados com a Sputnik V em uma quadra de basquete em Buenos Aires.
Profissionais de saúde são vacinados com a Sputnik V em uma quadra de basquete em Buenos Aires.JUAN MABROMATA (AFP)
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Las enormes diferencias entre las vacunas de Pfizer, Moderna y Oxford.
As diferenças abismais entre as vacinas de Oxford, Pfizer e Moderna, a Coronavac e a Sputnik V
A picture taken on December 4, 2020 shows the production of Russia's Gam-COVID-Vac vaccine against the coronavirus disease (Covid-19) registered under trade name Sputnik V, developed by the Gamaleya Research Institute of Epidemiology and Microbiology in coordination with the Russian Defence Ministry, at the facility of Russia's biotech company BIOCAD in Strelna outside Saint Petersburg. (Photo by Olga MALTSEVA / AFP)
Argentina se atrapalha com a vacina russa dias antes da chegada das primeiras doses ao país
(FILES) This handout file photo taken on August 06, 2020 and provided by the Russian Direct Investment Fund shows the vaccine against the coronavirus disease (Sputnik V (Gam-COVID-Vac)), developed by the Gamaleya Research Institute of Epidemiology and Microbiology. - Russia's Sputnik V vaccine is 91.6 percent effective against symptomatic Covid-19, according to results published in The Lancet on February 2, 2021 that independent experts said allayed transparency concerns over the jab, which Moscow is already rolling out. (Photo by Handout / Russian Direct Investment Fund / AFP) / RESTRICTED TO EDITORIAL USE - MANDATORY CREDIT "AFP PHOTO / Russian Direct Investment Fund / Handout " - NO MARKETING - NO ADVERTISING CAMPAIGNS - DISTRIBUTED AS A SERVICE TO CLIENTS
Anvisa facilita rota da Sputnik V no Brasil enquanto Governo anuncia negociação para compra de doses

Até poucas semanas atrás, a vacina russa Sputnik V era uma possibilidade remota para grande parte da América Latina no combate à covid-19. Brasil e Chile apostavam na Coronavac, o imunizante da farmacêutica chinesa Sinovac. O Peru estava de olho no laboratório Sinopharma. O México se converteu em um dos primeiros países no mundo a fechar um acordo com a Pfizer e iniciar sua campanha de vacinação. A Argentina era dos poucos que avançavam nas negociações pela Sputnik V, que segundo um estudo publicado nesta terça-feira na prestigiosa revista científica The Lancet, chega a 91,6% de eficácia. Uma série de imprevistos na corrida pela imunização mudou tudo e obrigou os demais Governos da região a buscar alternativas para proteger sua população em uma pandemia que já deixou mais de um milhão de mortos em todo o continente. Então, a Rússia pôs em órbita sua principal vacina, com a esperança de distribuir mais de 300 milhões de doses antes do fim do ano, um esforço no qual o Governo do presidente argentino, Alberto Fernández, teve papel de destaque e que o México e outros países ―como o Brasil―, veem agora com esperança após os resultados de sua eficácia, diante do enorme desafio que tem pela frente com seu plano de vacinação.

Nesta quarta-feira, o Brasil engrossou a lista dos países latinos que abriram caminho para o imunizante russo. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) reduziu uma etapa no processo para autorização de uso emergencial de imunizantes no país ―que atualmente tem aprovadas as vacinas Coronavac e a Astrazeneca/Oxford―, ao retirar a exigência de testes clínicos de fase três em solo brasileiro. “A vacina com estudo de fase três no Brasil ou no exterior vai ter que seguir o mesmo critério de segurança, eficácia e qualidade. A única diferença vai ser apresentar dados para que tenhamos confiança no estudo do exterior”, afirmou o gerente-geral de Medicamentos e Produtos Biológicos da Anvisa, Gustavo Mendes. O pedido de uso emergencial do imunizante no Brasil, solicitado pela farmacêutica União Química, segue em análise.

A irrupção da Sputnik V (o “V” é de “vacina”) no cenário latino-americano foi marcada pela polêmica. Depois de acertar o envio de 20 milhões de doses à Argentina, 10 milhões à Venezuela e 24 milhões ao México, surgiram questionamentos de todos os tipos: desde dúvidas pela falta de informação científica publicada no Ocidente no momento em que foram fechados os primeiros acordos e os dardos políticos para criticar a gestão da pandemia, até os medos e delírios que beiram as teorias da conspiração. “Lembrem-se de que [a Sputnik] tem um chip comunista, castrista e chavista”, postou um usuário do Twitter. “É a vacina barata, por isso o Governo a escolheu”, acusou a senadora mexicana Lilly Téllez. “É uma grande fraude”, disse a líder oposicionista argentina Elisa Carrió, que denunciou o presidente Fernández por possível “envenenamento” da população. A própria embaixada russa no México publicou em suas redes na semana passada que era alvo de uma campanha de “desinformação”.

Os resultados preliminares do estudo publicado na terça-feira, realizado com 20.000 participantes ―dos quais 75% receberam a vacina e os demais, placebo―, mostram que apenas 16 tiveram covid-19 sintomática entre os vacinados (0,1%), e 62 entre os não vacinados (1,3%). A publicação desses números deu novo impulso à imunização, frente ao ceticismo inicial da comunidade científica internacional. Com a Sputnik V, a Rússia aspira a permanecer no primeiro pelotão da corrida científica, um jogo reservado às grandes potências. Mas não é só uma questão de prestígio. A vacina “é um bom negócio, com um componente humanitário claro”, disse o presidente russo, Vladimir Putin, em outubro a um grupo de magnatas do país, incentivando-os a investir na produção e aproveitar uma oportunidade empresarial que, segundo ele, poderia significar 100 bilhões de dólares (538 bilhões de reais) em receitas no mundo todo.

Em 11 de agosto, em uma reunião de ministros realizada por meio do Zoom, mas transmitida ao vivo pelos canais estatais, Putin anunciou a autorização especial para a vacina contra o coronavírus desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Moscou. O líder russo comentou que esse imunizante era “seguro” e “bastante eficaz”. Mas seus cientistas não tinham publicado até então nenhum dado de seus testes da fase 1 nem da fase 2, que já haviam despertado certas dúvidas dentro da comunidade científica por sua velocidade. E não tinham começado os ensaios da fase 3, que são os que envolvem um número maior de pessoas. Putin, que assegurou com expressão séria que a vacina tinha passado por “todos os testes necessários”, resolveu a questão com um golpe de efeito: uma de suas filhas já havia sido vacinada, afirmou. “Ela está bem. Tudo está indo como se nada tivesse ocorrido”, acrescentou.

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Pouco depois daquela declaração, o Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF), o fundo soberano da Rússia ―com um capital reservado de 10 bilhões de dólares (53,8 bilhões de reais)―, que financiou o desenvolvimento da vacina e está coordenando os acordos de exportação, anunciou o nome para o mercado externo do imunizante do Instituto Gamaleya. A vacina, baseada em adenovírus do resfriado modificados, passou a se chamar Sputnik V, como o satélite que a União Soviética pôs em órbita em 1957, durante a Guerra Fria, tornando-se o primeiro país a fazer isso e superando os Estados Unidos na corrida espacial. Outro detalhe que dá uma ideia da importância geopolítica para a Rússia. O Kremlin se esforçou para tentar ser o primeiro. E acelerou o que fosse preciso para isso.

Vacuna rusa Sputnik V COVID 19
Várias doses da vacina Sputnik V em um hospital de Buenos Aires. AGUSTIN MARCARIAN (Reuters)

Além de Argentina, México e Bolívia, a Rússia distribuiu a vacina para uma dúzia de outros países, entre eles Belarus, Sérvia, Israel e Emirados Árabes, e tem pré-acordos com outros. A Sputnik V ocupa o terceiro lugar mundial em doses encomendadas por países de baixa e média renda, segundo dados do Centro de Inovação em Saúde Global da Universidade de Duke, à frente das vacinas que as autoridades russas consideram suas principais concorrentes: a da Pfizer-BioNTech e a da Moderna. “A pandemia só reforçou a distribuição de poder no sistema internacional, com blocos como os dos Estados Unidos, da Europa e da China”, comenta Stephan Sberro, professor do Instituto Tecnológico Autônomo do México. “Mas a grande surpresa foi a Rússia.”

O entusiasmo do Kremlin com a vacina, no entanto, foi recebido com reservas fora da Rússia, onde voltaram a aflorar críticas pela falta de transparência de seus dados e pela rapidez com que foi registrada para uso. Entre essas dúvidas estavam as do epidemiologista norte-americano Anthony Fauci, que lidera a estratégia contra o coronavírus nos EUA. “Espero que os russos tenham provado definitivamente que a vacina é segura e eficaz. Tenho sérias dúvidas de que tenham feito isso”, disse ele à TV ABC. Hugo López-Gatell, o czar mexicano do combate à pandemia, mostrou-se “surpreso” no dia em que a Sputnik V foi apresentada. “Definitivamente, não se pode começar a utilizar uma vacina que não tenha concluído satisfatoriamente os estudos da fase 3, nem se deve, por razões éticas”, assinalou o subsecretário de Saúde.

Em agosto e setembro, o México explorou com o embaixador russo a possibilidade de fazer ensaios clínicos, mas isso não foi levado a cabo. Em 9 de setembro, o Kremlin anunciou a assinatura de um acordo para enviar 32 milhões de doses ao México. Na verdade, tratava-se de um contrato para distribuir as vacinas com o Landsteiner Scientific, um laboratório privado. “Não tem nada a ver com o Governo do México”, respondeu López-Gatell.

Depois de um esforço diplomático de vários meses, as primeiras 3.000 doses da vacina da Pfizer chegaram ao México em 23 de dezembro. “É um dia histórico”, celebrou o chanceler Marcelo Ebrard. Assim como ocorreu em países como a Espanha, foi uma entrega “simbólica”. Um dia depois, a Argentina recebeu seu primeiro carregamento: um lote de 300.000 doses da Sputnik V. Na Rússia, os principais canais estatais divulgaram imagens da aterrissagem do avião e do desembarque das caixas com o logotipo da vacina russa. Pouco depois, começou a vacinação, e o RDIF, da Rússia, pediu nas redes sociais que as pessoas que tivessem recebido a vacina russa subissem suas fotos mostrando fazendo o “V da vitória” com os dedos.

O fato de a Argentina ter recebido 100 vezes mais doses que o México chamou a atenção do presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, conta uma fonte governamental, e começou-se a questionar se o Governo tinha fechado as portas para Moscou muito cedo. Duas semanas depois, uma delegação mexicana encabeçada por López-Gatell partiu para Buenos Aires para se informar sobre a vacina do Instituto Gamaleya, um imunizante composto por duas doses (a segunda deve ser aplicada 21 dias após a primeira), com dois vetores de adenovírus distintos

A capital argentina como destino não era casual. Em meados do ano passado, enquanto López-Gatell se recusava a abrir as portas para Moscou, o Executivo de Fernández tinha aberto canais de negociação com vários fabricantes para adquirir vacinas; entre eles, o Instituto Gamaleya. O objetivo era conseguir envios em larga escala de doses “seguras e eficazes” o mais rápido possível, diz Cecilia Nicolini, assessora do presidente argentino. “Como o instituto é uma farmacêutica pequena que não tem o impacto das grandes farmacêuticas, decidimos ir à Rússia para obter informações em primeira mão”, conta.

Nicolini embarcou em 17 de outubro com a secretária de acesso à Saúde, Carla Vizzotti, rumo à Rússia. Nessa primeira viagem, que durou 10 dias, as duas funcionárias tiveram acesso aos dados da fase 3. Depois dessa visita, Fernández manteve uma conversa telefônica com Vladimir Putin em 5 de novembro para fechar os detalhes da compra. Finalmente, em 10 de dezembro, o presidente argentino anunciou que tinha assinado o terceiro acordo para adquirir vacinas, depois de um convênio com a AstraZeneca e de outro com a Covax ―a iniciativa apoiada pela Organização Mundial da Saúde com o objetivo de garantir o acesso global às vacinas contra a covid-19.

Com o sinal verde da Casa Rosada, a delegação argentina foi novamente à Rússia em 12 de dezembro para obter, durante duas semanas, todas as informações necessárias para a aprovação da vacina. “Muitas informações não estavam disponíveis para nossos países ou nosso idioma”, conta Nicolini, “porque a Gamaleya é uma farmacêutica acostumada a abastecer o mercado interno, cumprindo as leis russas”. Foram dias de dezenas de videochamadas e visitas às instalações do Instituto Gamaleya e centenas de páginas de tradução do russo para o espanhol. À magnitude da tarefa se somava a pressa presidencial ―Fernández queria o mérito de iniciar a vacinação antes do fim do ano.

Terceiro lote de doses da Sputnik V chega a Buenos Aires em 28 de janeiro.
Terceiro lote de doses da Sputnik V chega a Buenos Aires em 28 de janeiro. Marcos Brindicci (Getty Images)

Em 23 de dezembro, a Argentina se tornou o segundo país do mundo a aprovar a Sputnik V, depois de Belarus. A agência reguladora argentina divulgou um comunicado recomendando sua “autorização emergencial” para cidadãos de 18 a 60 anos. Um dia depois, a comitiva argentina retornou da segunda viagem com o primeiro carregamento de 300.000 doses da vacina russa, as primeiras a entrar à América Latina.

Esse arquivo digital com centenas de páginas que o Governo de Fernández trouxe de Moscou e traduziu para apresentar à agência reguladora argentina foi o que a comitiva mexicana levou de sua viagem a Buenos Aires e apresentou depois à agência reguladora do México. “Vieram com uma atitude de interesse, queriam ter acesso às informações”, conta Nicolini, que também fez parte da equipe que recebeu o czar mexicano contra a pandemia. O Governo argentino fez então o papel de ponte entre México e Rússia. “Nós os colocamos em contato e em 24 horas organizamos uma chamada”, assinala a assessora do Fernández.

Naquela ocasião, afirmam fontes do Governo mexicano, já ficou acertado o envio de 24 milhões de doses ao México, número que foi anunciado oficialmente depois da conversa telefônica entre López Obrador e Putin em 25 de janeiro. Fazia meses que o México, com uma população quase três vezes maior que a da Argentina, era um mercado prioritário para o Kremlin.

E o México não foi o único. O Governo argentino forneceu os mesmos documentos à Bolívia, ao Uruguai e ao Peru. “Foi assim que a Bolívia aprovou a vacina russa”, diz Nicolini. O Governo do presidente boliviano, Luis Arce, autorizou a vacina russa em 6 de janeiro e recebeu o primeiro carregamento com 20.000 doses na quinta-feira passada. O impulso de Fernández para a Sputnik V atravessou também as linhas políticas do mapa regional, ao construir pontes com o Governo de Sebastián Piñera no Chile e compartilhar com ele o dossiê técnico em uma visita presidencial a Santiago na semana passada. “O vírus não tem ideologia, e a cura também não”, afirma Nicolini.

Além da jogada geopolítica que a Sputnik V significa para a Rússia, a vacina também abriu o jogo na América Latina, onde Fernández procura se impor como um dos líderes políticos, juntamente com López Obrador. “A relação entre Buenos Aires e Cidade do México tem de ser a espinha dorsal da região”, acrescenta a assessora presidencial.

Na sexta-feira passada, depois de aparecer em público pela primeira vez depois de ter covid-19, López Obrador disse esperar um primeiro embarque com 200.000 doses da Sputnik V para esta primeira semana de fevereiro. O anúncio do acordo com o Kremlin foi feito antes da aprovação da vacina, o mesmo padrão seguido por países como Argentina e Venezuela. Para o epidemiologista Mauricio Rodríguez, da Universidade Nacional Autônoma do México, o fato de que os reguladores mexicanos tenham demorado para conceder a autorização significa que estão sendo impostos critérios técnicos e não políticos. “Será um processo gradual, não podemos descuidar das precauções contra a doença pela chegada de uma vacina”, afirma. Após a publicação dos dados na The Lancet, a agência reguladora do México aprovou na noite da terça-feira o uso emergencial da Sputnik V.

Em meio a uma discussão mais política que científica, os especialistas optam pela cautela e afirmam que não há motivos para suspeitar da eficácia e segurança da vacina. “O assunto foi politizado, mas é preciso ver os dados concretos, e os resultados são bons”, diz Jorge Geffner, especialista em imunologia da Universidade de Buenos Aires. Seu laboratório realiza, com outros dois, o acompanhamento dos anticorpos produzidos por pessoas já vacinadas na Argentina. “Os resultados preliminares são similares aos do Instituto Gamaleya”, assinala.

A desconfiança que se instalou na Argentina em relação ao principal imunizante russo levou o presidente Fernández a pedir à população que vá se vacinar com a Sputnik V. “Ser vacinado serve para ficar imune. Façamos isso”, disse ele em 21 de janeiro, depois de receber a primeira dose da Sputnik. “Muitos políticos disseram ‘eu não me vacino com ela nem louco’, sem saber do que se trata”, assinala a argentina Daniela Hozbor, pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (Conicet). “Não podemos desconfiar, sem fundamento, da agência reguladora”, acrescenta. “Isso é muito prejudicial, porque é brincar com a vida das pessoas.”

Alberto Fernández durante uma conversa telefônica com Vladimir Putin.
Alberto Fernández durante uma conversa telefônica com Vladimir Putin. ESTEBAN COLLAZO (AFP)

Na Rússia, as críticas à vacina Sputnik V foram rotuladas de russofobia. No mês passado, o poderoso porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, afirmou que alguns países e as empresas farmacêuticas globais estão utilizando métodos de má reputação para minar o principal imunizante russo. “A competição aqui está sendo politizada, e estão recorrendo a truques sujos para desacreditar a vacina”, afirmou, enfático. Kirill Dmitriev, chefe do Fundo Russo de Investimento Direto, acredita que estão sendo usados dois pesos e duas medidas em relação à Sputnik V pelo fato de ser russa.

Ilya Yasni, chefe de pesquisa científica do Inbio Ventures, um fundo de investimento russo especializado, diz que grande parte desse ceticismo diante da vacina do Instituto Gamaleya se deve ao fato de que os processos de registro e vacinação foram iniciados sem a divulgação dos dados, quando estavam disponíveis apenas comunicados à imprensa. “Há uma desconfiança mundial em relação a todas as vacinas, porque foram desenvolvidas muito rápido. Mas a pandemia e sua ameaça exigiram prazos incomuns”, aponta o especialista, que explica que, por regra geral, uma vacina demora no mínimo quatro anos para ser desenvolvida ―e esse tempo já é considerado “rápido”. Yasni diz também que enquanto a Pfizer, a AstraZeneca e a Moderna se mobilizaram para promover a confiança nas vacinas com a divulgação de artigos e debates, esse foi um capítulo pendente para os desenvolvedores da Sputnik V.

Alguns dos voluntários russos que participaram dos ensaios da vacina do Instituto Gamaleya se organizaram para compartilhar informações e dizer como se sentiam em grupos do Facebook e do aplicativo de mensagens Telegram, muito popular na Rússia. Com tantas informações, se tivessem ocorrido casos graves, eles teriam aparecido, no mínimo, nas redes sociais, acredita Yasni. De fato, alguns analistas apontaram que, com todos os dados agora disponíveis, suas principais dúvidas são sobre a eficácia e a duração da proteção da Sputnik V, mais que sobre sua segurança. “Também é preciso ver a questão de outro ângulo: estamos diante de uma pandemia furiosa, as pessoas estão morrendo. Em alguns cenários, é melhor injetar algo em vez de absolutamente nada”, opina Yasni.

A vacina também causou preocupação na própria Rússia: em dezembro, uma pesquisa do Centro Levada revelou que quase 60% da população russa não quer ser vacinada. No entanto, Denis Volkov, subdiretor desse centro de pesquisas, o único independente do país, acredita que essa porcentagem não se deve apenas à desconfiança em relação à vacina, mas também à falta de confiança no Governo e também ao fato de muitos russos não perceberem a gravidade da pandemia. Nesse país de 145 milhões de habitantes, os dados sobre as mortes devido à covid-19 não se caracterizam por sua transparência, e o número real de mortes é muito mais alto do que o divulgado oficialmente, como o próprio Governo teve de reconhecer.

“Nossa Sputnik V é modesta e confiável, como o fuzil Kalashnikov”, disse o famoso apresentador da televisão estatal Dmitri Kiseliov, considerado o propagandista-chefe do Kremlin. Além disso, a principal vacina russa, que ainda não tem a certificação da Organização Mundial da Saúde (da qual muitos países em desenvolvimento dependem para apostar nela), tem certas vantagens sobre suas concorrentes, graças ao seu preço e à logística necessária para sua distribuição. Mas também se destaca porque seus principais clientes têm menos capacidade de negociação que países ricos ou que atuam em grupo, como a União Europeia. Os responsáveis pela Sputnik V estão em conversações com a Agência Europeia de Medicamento (EMA) para solicitar o registro e a autorização de uso na Europa ―onde a Hungria já deu sinal verde para o imunizante, em meio a críticas contra Bruxelas pela lentidão de seus trabalhos para obter mais frascos, e já comprou dois milhões de doses do Gamaleya.

O RDIF, o fundo russo que financiou a vacina, não revela quanto investiu no imunizante. Nem o valor dos contratos que assinou, embora detalhe que o preço das duas doses é inferior a 20 dólares (107 reais), em comparação com os 30 a 40 dólares (161 a 214 reais) que custam as da Pfizer e da Moderna (feitas com um método totalmente distinto, de aprovação mais recente); a desenvolvida pela AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford é mais barata. Além disso, explica Kirill Dmitriev, diretor do RDIF, seus requisitos de armazenamento também são uma vantagem: os frascos, que contêm cinco doses cada um, devem ser guardados a -18 graus Celsius em sua forma líquida e duram seis meses; já em sua forma liofilizada (seca), a vacina deve ser armazenada a uma temperatura entre dois e oito graus Celsius, o que facilita seu transporte. A da Moderna deve ser transportada a uma temperatura de -20 graus Celsius e a da Pfizer, de -75 graus.

No início de dezembro, em plena segunda onda da pandemia, Putin pediu que sua equipe acelerasse os trabalhos para imunizar a população. Em 5 de dezembro, Moscou começou sua campanha para vacinar os grupos de risco: profissionais de saúde, educação e serviços sociais. Em 23 de dezembro, os responsáveis pela vacina do Gamaleya informaram que, com os dados já disponíveis e levando em conta que a campanha já tinha sido iniciada, estavam parando de dar placebo aos voluntários participantes de seus ensaios clínicos, que já tinham passado de 20.000. Os próprios pesquisadores do Gamaleya ―em alguns casos, também seus familiares― participaram desses testes. Alguns altos funcionários russos e grandes empresários se vacinaram antes que a Sputnik V estivesse disponível para os grupos de risco. Desde 18 de janeiro, a vacina está disponível para toda a população de forma gratuita, e cerca de 1,5 milhão de pessoas já foram vacinadas, segundo o RDIF.

Produção da Sputnik V nas instalações da empresa russa de biotecnologia BIOCAD, perto de São Petersburgo.
Produção da Sputnik V nas instalações da empresa russa de biotecnologia BIOCAD, perto de São Petersburgo. OLGA MALTSEVA (AFP)

Agora, um dos desafios fundamentais é aumentar o ritmo de produção. As autoridades russas tiveram de reduzir a previsão inicial de produção de 30 milhões de doses até o fim de 2020, porque não era possível cumpri-la. A Rússia tem seis laboratórios que produzem a Sputnik V, embora as vacinas para o mercado externo sejam feitas, “em geral”, segundo o RDIF, fora da Rússia ―na Coreia do Sul, no Cazaquistão e na Índia. Além disso, Moscou está fechando acordos com países para que eles mesmos produzam a Sputnik V. Fernández conversou nesta terça-feira com Putin sobre o abastecimento na Argentina e a possibilidade de que a vacina seja produzida no país sul-americano. Mas isso, aponta Ilya Yasni, do Inbio Ventures, não é muito rápido nem simples, porque requer um “processo complexo de transferência de informações”.

Por isso, os cientistas, que também estudam o uso combinado da Sputnik V com a vacina da AstraZeneca, estão trabalhando agora em uma “versão leve” do imunizante, que seria de apenas uma dose e teria uma eficácia menor, mas “aceitável”, de 73% a 85%.

A Rússia confia em sua vacina para proteger a população do vírus que já infectou mais de 3,8 milhões de pessoas no país. E instalou pontos de vacinação em clínicas, hospitais, escolas e até shopping centers. Na famosa loja de departamentos GUM, na Praça Vermelha de Moscou, entre estabelecimentos e restaurantes de luxo, também foi instalado um posto móvel para a Sputnik V.

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