Projeto para legalizar o aborto na Argentina chega nesta terça ao Senado, seu último obstáculo
Senadores debatem aprovação de lei que permite a interrupção voluntária da gravidez até a 14ª semana
“Há décadas esperamos por este momento. O aborto legal é uma reivindicação social e transversal”, dizem em uma carta mais de 1.500 personalidades da cultura da Argentina. “É hora de fazer história. O mundo está nos observando”, acrescenta o documento divulgado neste domingo, a dois dias da votação decisiva. Nesta terça-feira, o Senado começa a debater o projeto de lei de interrupção voluntária da gravidez, que permite o aborto livre até a 14ª semana. A proposta já foi aprovada na Câmara dos Deputados e segue para o voto dos senadores. Se o sim vencer, a Argentina se tornará o primeiro grande país da América Latina a reconhecer o direito das mulheres de decidir sobre seus corpos, seguindo os passos do Uruguai, Cuba, Guiana e Cidade do México.
Faltando um dia para a votação, o resultado é incerto, e apoiadores e opositores lutam voto a voto para fazer a balança pender a seu favor. Alguns indecisos mantêm seu voto em segredo, não se sabe se o ex-presidente Carlos Menem —internado em estado grave aos 90 anos por insuficiência renal— estará em condições de votar pelo não de forma remota na clínica. Alguns parlamentares estudam a possibilidade de modificar sua posição em relação a 2018, quando o Senado rejeitou a legalização do aborto por 38 votos contra 31 a favor, com duas abstenções.
O que mudou desde então? Há dois anos, o então presidente argentino, Mauricio Macri, era contra, mas possibilitou o debate legislativo e anunciou que não vetaria a lei caso fosse aprovada. Seu sucessor, Alberto Fernández, é o primeiro presidente em exercício a apoiar o aborto legal. Argumenta que a criminalização dessa prática não dissuadiu as pessoas decididas a interromper a gravidez. “Só permitiu que os abortos ocorressem clandestinamente em números preocupantes. Todos os anos cerca de 38.000 mulheres são hospitalizadas por abortos malfeitos”, disse ele ao enviar o projeto de lei ao Congresso.
Em 2018, o último ano com dados oficiais, 35 mulheres morreram por complicações decorrentes de abortos clandestinos. “Se esse projeto for aprovado, não vamos violentar as crenças de ninguém. Vamos ter menos sofrimento para as mulheres e menos mortes evitáveis “, concorda a secretária de Legislação e Técnica, Vilma Ibarra, coordenadora da equipe que redigiu o projeto de lei. A norma prevê que as gestantes possam abortar de forma gratuita e segura na rede pública de saúde. Na maioria dos casos, em atendimento ambulatorial com o uso de pílulas abortivas.
Diferença de gênero
A legislação em vigor na Argentina sobre o aborto data de 1921 e prevê penas de até quatro anos de prisão para quem interromper a gravidez, exceto em caso de estupro ou risco de vida para a mãe. Há um século, as mulheres não podiam votar, muito menos ser deputadas ou senadoras. Hoje, detendo 40% das cadeiras do Senado, a lacuna de gênero nesta votação também é evidente: entre as que anteciparam seu voto, há pelo menos 16 mulheres a favor e 9 contra. Entre seus colegas do sexo masculino, há até o momento 16 a favor e 24 contra.
É a nona vez que um projeto de interrupção voluntária da gravidez é apresentado no Congresso argentino, mas a primeira em que é redigido e defendido pelo Governo. O Executivo também acompanha a iniciativa com uma proposta de reforçar os cuidados materno-infantis durante a gravidez e os primeiros mil dias de vida do bebê para as mulheres que derem à luz. A pressão do Governo sobre sua bancada parlamentar foi fundamental para a aprovação de leis anteriores que também tiveram ampla oposição de setores religiosos e conservadores, como a lei do casamento igualitário, em 2010, e a lei de identidade de gênero, em 2012.
O Executivo tenta fazer com que os senadores da governista Frente de Todos que em 2018 votaram contra a legalização mudem de posição. Mas há também alguns oposicionistas que poderiam reagir ao contrário para impedir uma vitória do Governo. Em caso de empate, o voto decisivo caberá à presidenta do Senado, a ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner, que votou a favor convencida por sua filha Florencia e pelas estudantes do ensino médio que lideraram as marchas da maré verde em favor do aborto legal, em 2018. O ativismo das mais jovens e das mais veteranas, bem como as discussões no Legislativo naquele ano, contribuiu para que o aborto deixasse de ser um tabu e passasse a ser objeto de intenso debate na opinião pública.
Apesar da pandemia de covid-19, milhares de pessoas passarão a noite em vigília nas ruas até o momento da votação, prevista para a madrugada de 30 de dezembro. A praça em frente ao Congresso será novamente dividida com barreiras para separar as manifestantes verdes, que defendem o aborto legal, das azuis, que se opõem. Foi o que aconteceu há duas semanas, quando a Câmara dos Deputados aprovou o projeto por 131 votos a favor, 117 contra e 6 abstenções. “A Argentina já votou, a Argentina é azul”, diziam na madrugada de 11 de dezembro os opositores da interrupção voluntária da gravidez. “Será lei”, “estamos fazendo história”, respondiam do outro lado da praça.
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