Vitória de Biden aumenta pressão sobre Bolsonaro para que troque Araújo e Salles
Em Brasília, diplomatas seguem em compasso de espera para saber se diplomacia brasileira vai abraçar pragmatismo na política externa e ambiental. Expectativa para declarações do Planalto sobre derrota de aliado
A menos que dê um giro de 180 graus em suas políticas de relações exteriores e ambiental, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, corre o risco de se tornar um pária internacional. Ainda assim, o mandatário brasileiro segue rasgando qualquer tradição do Itamaraty, de não se manifestar sobre disputas presidenciais de outros países, e, antes mesmo do resultado final, voltou a atacar o eleito Joe Biden. “O candidato democrata, em duas oportunidades, falou sobre a Amazônia. É isso que estamos querendo para o Brasil? Aí, sim, uma interferência de fora para dentro”, declarou a apoiadores nesta quarta-feira, em Brasília. Mais cedo, ele havia dito que “a esperança é a última que morre”, ao saber que a eleição poderia ser judicializada por Donald Trump. No fim da semana, contudo, amenizou o tom e afirmou que nem ele próprio é a pessoa mais importante do Brasil, nem Trump do mundo. “Eu não sou a pessoa mais importante do Brasil, assim como Trump não é a pessoa mais importante do mundo, como ele mesmo diz. A pessoa mais importante é Deus, a humildade tem que se fazer presente entre nós”, afirmou em cerimônia de formatura de policiais, em Santa Catarina.
Diplomatas e analistas políticos ouvidos pela reportagem apontam que a vitória do democrata Biden sobre o republicano Trump na corrida pela presidência dos Estados Unidos aprofundará um isolamento criado por Bolsonaro e por seu chanceler Ernesto Araújo. Espelhando-se no derrotado presidente americano, mas sem o poderio econômico e militar que aquele país tem, os brasileiros têm desdenhado de organismos multilaterais e atuado contra bandeiras que por décadas foram defendidas por aqui, como a de direitos humanos, proteção ambiental e de defesa das mulheres. Todas essas foram escancaradamente apoiadas por Biden na corrida pela Casa Branca neste ano, como uma forma de obter apoio da ala progressista de seu partido.
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No meio diplomático, representantes de governos estrangeiros fizeram chegar ao Palácio do Planalto na última semana que, caso Biden vencesse, Bolsonaro deveria ser pragmático. E, como sinal de que está aberto ao diálogo com o novo presidente, demitiria os dois principais representantes da ala radical de seu Governo, Ernesto Araújo e de Ricardo Salles, o ministro do Meio Ambiente que não possui qualquer reconhecimento internacional de seus pares. O presidente não se manifestou se pretende seguir os conselhos. Costuma não segui-los, aliás. Mas entre seus assessores há quem tente convencê-lo da mudança, ainda que ela ocorra a médio prazo, para não parecer que o presidente cedeu aos interesses da nova cúpula de poder americana ou que abriu mão da soberania brasileira. “Sem o Trump, Ricardo Salles e Araújo se tornam peças mais vulneráveis. Se quiser sobreviver neste cenário internacional, Bolsonaro deve pensar em se desfazer deles”, disse o cientista político Fábio de Sá e Silva, professor de Estudos Internacionais da Universidade Oklahoma (EUA).
O sinal de isolamento foi apontado por cinco diplomatas estrangeiros que atuam em Brasília e falaram com a reportagem sob a condição de não terem seus nomes divulgados. “Estávamos esperando o resultado da eleição americana para saber como deveríamos tratar o Brasil. Agora que ela ocorreu, aguardamos as movimentações do Governo brasileiro para entender de que lado ele está, se o da ideologia ou o do mundo globalizado, interconectado”, afirmou um embaixador.
Para alguns que já passaram por cargos-chave no Itamaraty, como o ex-secretário-geral do órgão e ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Roberto Abdenur, e o ex-embaixador na China, Marcos Caramuru, o Governo Bolsonaro errou em se aliar à persona de Trump, e não ao Governo americano. “Durante décadas o Brasil se alinhou aos Estados Unidos em diversos momentos. Mas eram alinhamentos de paralelismo. Esse alinhamento entre Bolsonaro e Trump é de subordinação, praticamente de vassalagem”, avaliou Abdenur. O resultado dessa aproximação, na visão dele, é a total ausência de parcerias estratégicas, seja com os EUA ou com qualquer outro país. “Nesses quase dois anos de mandato, o Brasil de Bolsonaro só tem três países e meio como amigos: Israel, Hungria, Polônia e a metade trumpista dos Estados Unidos. Com a eleição de Biden ficamos soltos no mundo”, ponderou.
É avaliação semelhante com a de Lucas Leite, professor de relações internacionais da FAAP: “Esse alinhamento ideológico sempre veio com alguma barganha, com algum tipo de benefício para o Brasil. No caso do Bolsonaro, ele foi gratuito, pouco negociado”.
Já o embaixador Caramuru entende que o Brasil deverá se curvar ao pragmatismo, assim como tem feito nas relações com a China. “Os Estados Unidos na gestão Trump vive uma dicotomia, uma esquizofrenia entre a ideologia e a realidade. É nisso que o Brasil se espelhou até o momento”, disse. Nos próximos meses, porém, a gestão Bolsonaro deverá automaticamente mudar de rota, assim como fez nas relações comerciais com China, país frequentemente criticado pelo presidente brasileiro e pelos seus asseclas. “Há uma consciência de nossa maior fragilidade como país. Pode haver uma retaliação econômica, caso haja uma radicalização por parte do Brasil. E ninguém quer correr o risco de perder”.
Dos 13 entrevistados para esta reportagem ―incluindo os cinco diplomatas que falaram extraoficialmente― apenas dois analistas entendem que não haverá graves estremecimentos entre a Casa Branca de Biden e o Palácio do Planalto de Bolsonaro: a professora e economista Vitoria Saddi, do Insper, e o cientista político Chistopher Garman, diretor-executivo para as Américas do Eurasia Group. “Geralmente, os governos democratas costumam fazer mais parcerias com o Brasil do que os republicanos. Acho que a ideologia fica para trás neste momento”, disse Saddi.
Já Garman entende que os Estados Unidos também não teriam interesse em fragilizar essa relação. “Não acredito que o Brasil vá se colocar em um ostracismo internacional por causa de uma birra ideológica”, afirmou. Na sua avaliação, a América Latina é um palco importante da disputa tecnológica e geopolítica com a China e a economia brasileira, a maior da região, é “grande demais para ser ignorada”. O único ponto de atrito entre as gestões Biden e Bolsonaro seria a ambiental, o que não é pouco. “Bolsonaro se colocou na infeliz posição de o vilão da pauta ambiental por causa das queimadas da Amazônia e do Pantanal e diante da reação belicosa do presidente”, analisou Garman.
Pressão financeira
Na ponta do lápis, a má gestão dessas crises ambientais e esse papel de vilão assumido por Bolsonaro tendem a resultar em perdas financeiras. “Vivemos um momento em que qualquer desvio na área ambiental já serve de argumento para perder negócios. Todos os grupos que quiserem adotar protecionismo em relação aos produtos brasileiros vão vir a carga e retaliar o Brasil”, avaliou o professor e coordenador do curso de relações internacionais da Fundação Getulio Vargas, Eduardo Mello.
Tanto Mello quanto o professor Sá e Silva, de Oklahoma, analisam que esse cenário negativo para o Brasil pode ser impulsionado por um grupo de congressistas aliados de Biden que enxergam a gestão Bolsonaro como uma violadora de direitos dos indígenas, das populações e das regras ambientais. “No Congresso americano se consolidou um grupo de parlamentares muito críticos ao Brasil que defendem que não se celebrem acordos por causa da questão ambiental. Também avaliam que a democracia no Brasil vive em risco”, relatou Sá e Silva.
Na área de direitos humanos, há ainda outros dois temas que podem acabar ganhando destaque com o novo ocupante da Casa Branca: a deportação coletiva de brasileiros e a possível desapropriação de áreas quilombolas em Alcântara, no Maranhão. Pela primeira vez, um presidente autorizou a deportação massiva de imigrantes brasileiros que teriam sido detidos nos EUA. Até o momento, 120 já chegaram ao país em voos fretados. Em relação a Alcântara, há a expectativa de que Biden respeite os direitos das tradicionais comunidades de negros que lá vivem. A gestão Bolsonaro deu andamento a um acordo de salvaguarda tecnológica que concede o uso comercial da base de lançamento de foguetes para os Estados Unidos. Há ainda a política de igualdade de gêneros que o Brasil abdicou desde a assunção de Bolsonaro ao poder.
Na prática, sem uma mudança de atitude, o Brasil poderia perder a chance de ingressar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), uma promessa feita por Trump que não conseguiu ser cumprida até o momento. “O Governo Bolsonaro perde um padrinho conivente com suas violações socioambientais e de direitos humanos. Agora, terá de mostrar um mínimo de compromisso nas questões ambientais e respeito de padrões mínimos na democracia para conseguir entrar na OCDE”, ponderou a diretora de programas da ONG Conectas, Camila Asano.
Na guerra fria do século XXI, o que não deverá mudar é a postura dos EUA com relação à frequência de internet 5G, que deve entrar em leilão no Brasil no próximo ano. A gestão Trump tem pressionado seus aliados a não aceitarem que a chinesa Huawei forneça equipamentos para as empresas telefônicas que participarem da disputa. O tema não é uma bandeira dos republicanos, mas de todo o país. “Tanto em círculos democratas quanto republicanos, a competição comercial com a China veio para ficar”, diz o professor Mello.
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