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Eleições EUA 2020
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Nem Trump nem Biden: o perdedor é o sistema eleitoral dos EUA

País precisa desesperadamente mudar o modelo para eleger seus representantes, mas é difícil que uma sociedade tão dividida seja capaz de criar o consenso político necessário para estas reformas de peso

Eleições EUA 2020
Quintatinta
Alexander Stille

Mesmo que o resultado definitivo das eleições presidenciais dos Estados Unidos ainda não esteja claro, a votação recém-ocorrida produziu um perdedor inegável, que é o sistema eleitoral norte-americano. Enquanto esperamos os dados de votações incrivelmente igualadas em um punhado de “Estados em disputa”, já é evidente que, no conjunto do país, Joe Biden obteve pelo menos dois milhões de votos a mais do que Donald Trump.

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A man gestures as he watches the numbers coming in from Virginia in favor of President Trump at the Cochise County Republican Headquarters in Sierra Vista, Arizona on November 3, 2020. (Photo by ARIANA DREHSLER / AFP)
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Las Vegas (United States), 03/11/2020.- David Moody, left, and his wife Jan Moody, of Las Vegas, cheer during a Republican watch party at the South Point Hotel & Casino in Las Vegas, Nevada, USA, 03 November 2020. Americans vote on Election Day to choose between re-electing Donald J. Trump or electing Joe Biden as the 46th President of the United States to serve from 2021 through 2024. (Estados Unidos) EFE/EPA/DAVID BECKER
EUA caminham rumo a uma crise institucional

O sistema eleitoral dos Estados Unidos tem duas características peculiares que contribuem extraordinariamente à confusão que estamos presenciando. A primeira é a o colégio eleitoral, o que significa que o presidente não se elege com os votos populares —como em quase todas as outras democracias—, e sim que o ganhador da votação em cada Estado recebe os “votos eleitorais” desse Estado. O propósito é garantir que o presidente conte com um apoio relativamente amplo na geografia do país, mas pode acontecer que os votos populares e os do colégio eleitoral não coincidam. Se Trump vencer, seria a terceira ocasião em que o vencedor do voto popular não chega à presidência.

Além disso, a Constituição norte-americana deixa a gestão das eleições nas mãos de cada Estado, o que explica por que já conhecemos os resultados definitivos de uns e é possível que só conheçamos os dos outros dentro de alguns dias. Em alguns Estados, as cédulas enviadas por correio podem começar a ser contadas quando chegam, nos dias anteriores, enquanto em outros só podem começar a ser apuradas no dia da eleição. Alguns Estados dão grandes facilidades para votar e outros tornam mais difícil. Há grandes diferenças até mesmo entre condados: em algumas partes de Wisconsin, milhares de cédulas impressas erroneamente causaram confusão. Os funcionários locais podem reduzir arbitrariamente o número de colégios eleitorais e as datas em que as pessoas podem ir votar. As filas para votar nos bairros pobres são quase sempre maiores do que nos distritos mais ricos. Alguns Estados há anos votam por correio e outros o fazem pela primeira vez.

A combinação desses dois sistemas —a apuração de votos Estado por Estado e o controle local das eleições— faz com que a eleição do líder do país mais poderoso da terra dependa de alguns milhares de votos em alguns Estados, cuja emissão e cuja apuração estão sujeitas a erros e manipulação. Consequentemente, ganhe quem ganhar, os eleitores terão sérias dúvidas sobre a legitimidade do resultado. Nesses meses de pandemia, o Partido Democrata pediu a muitos de seus partidários que votassem por correio por razões de saúde, e em três Estados fundamentais —Pensilvânia, Michigan e Wisconsin— as cédulas só puderam começar a ser apuradas em 3 de novembro, o que significa que muitos votos (e com toda a probabilidade, votos principalmente democratas) ainda estão sendo contados e só estarão completamente tabulados dentro de vários dias. Isso serviu de desculpa a Trump para colocar em dúvida sua legitimidade. Em 4 de novembro, por volta das duas e meia da madrugada —hora local— o presidente declarou: “A verdade, ganhamos... Queremos que os votos sejam interrompidos. No que cabe a mim, já vencemos”.

Até um comentarista da Fox News, a emissora favorita de Trump, criticou suas palavras e as chamou de perigosa tentativa de destruir o sistema democrático. “Estamos em uma situação enormemente inflamável e o presidente acaba de lançar um fósforo nela”, disse Chris Wallace. “Não venceu nesses Estados”.

Foi uma jogada típica de Trump. Não havia ninguém votando. O que ocorria era que estavam sendo contados votos emitidos legalmente, em muitos casos porque os legisladores republicanos dos Estados em questão não haviam deixado que fossem contados antes. Ao mesmo tempo, como em alguns Estados o voto por correio é uma novidade e as instruções, às vezes, são confusas, seria preciso anular dezenas de milhares de votos, talvez centenas de milhares. Alguns Estados, os que fazem a apuração com rapidez, permitem que os eleitores que cometem erros ao preencher suas cédulas —até mesmo escrever com tinta de cor inadequada— as “corrijam”. Outros, não. Na Geórgia e na Carolina do Norte, dois Estados cruciais nos quais a contagem ainda está sendo feita, as cédulas enviadas por correio têm o dobro de probabilidades de ser recusadas se forem de eleitores negros do que de eleitores brancos.

“O sistema norte-americano é uma mistura de autoridades estaduais e locais”, escreveu há pouco o cientista político Larry Diamond. “Quase todos os cargos são desempenhados por profissionais sérios, mas as assembleias estaduais e os secretários eleitos podem ser partidários e lançar dúvidas sobre sua imparcialidade. Nenhuma outra democracia avançada está tão distante das normas democráticas contemporâneas de justiça, neutralidade e racionalidade em seu sistema de gestão das eleições nacionais”.

O controle local das eleições foi um convite à manipulação por parte do partido no poder. Os EUA modificam seu mapa eleitoral a cada 10 anos, quando é feito o censo nacional. Os republicanos sabem de sua importância e se esforçaram de modo impensável para vencer as eleições locais em 2010, eleições de meio de mandato, nas quais a participação costuma ser baixa. Desse modo puderam refazer o mapa eleitoral de numerosos Estados importantes através do chamado sistema de gerrymandering, que consiste em redesenhar o mapa eleitoral para concentrar a oposição em algumas circunscrições e espalhar seus próprios seguidores. Em outras palavras, é possível traçar distritos em que os democratas formam 70% do eleitorado em alguns locais e os republicanos sejam 55% no restante do Estado.

Os eleitores democratas são ligeiramente mais numerosos do que os republicanos na Pensilvânia, Carolina do Norte e Michigan; ainda assim, graças ao gerrymandering, os republicanos obtiveram 13 das 18 cadeiras no Congresso correspondentes à Pensilvânia, 9 das 13 da Carolina do Norte e 9 das 14 de Michigan. Muitos Estados republicanos diminuíram o número de colégios eleitorais, aprovaram leis restritivas para identificar os eleitores e eliminaram das listas do censo os eleitores menos assíduos, além de outras táticas para reduzir a participação, principalmente em áreas de minorias que tendem a votar nos democratas. As medidas foram ratificadas por um Supremo Tribunal conservador, que também é produto desse sistema pelo qual a minoria governa. Os democratas ganharam as votações populares em seis das sete últimas eleições presidenciais (sem incluir 2020) e, entretanto, seis dos nove magistrados do Supremo são nomeações dos republicanos.

Como destaca Diamond, a Constituição dos Estados Unidos, que é a mais antiga em vigor das democracias mundiais, precisa desesperadamente ser atualizada. Está claro que o sistema eleitoral também precisa de uma renovação para garantir certo grau de justiça, uniformidade e legitimidade. Mas é difícil que um país tão dividido seja capaz de criar o consenso político necessário para empreender reformas de peso.

Alexander Stille dirige o programa de jornalismo político da Universidade Columbia, em Nova York

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