Paul Auster: “Tudo na história dos Estados Unidos volta sempre ao racismo, é o defeito mortal deste país”
O romancista, que promove uma associação de escritores contra Trump, lamenta que os democratas não tenham dado “nenhuma razão” para a classe trabalhadora votar neles
Quando se abre o site dos Escritores Contra Trump, se vê uma foto em tom sépia de um jovem atirado no chão, como em posição fetal, cercado pelas pernas de vários homens de terno. “Esse jovem sou eu”, revela Paul Auster, baixando suas inconfundíveis sobrancelhas negras, numa expressão entre a graça e o pudor. “Foi em 1968, quando eu tinha 21 anos, e estão me prendendo na universidade de Columbia.” Eram os anos desse movimento pelos direitos civis que se infiltra nas páginas de seu último romance, 4 3 2 1 (Companhia das Letras, 2018), uma de suas obras mais ambiciosas e celebradas. A foto prova, explica o romancista, que ele sempre esteve envolvido com a política. “Mas nunca tão ativamente como agora”, reconhece, “porque sinto que agora o futuro inteiro dos Estados Unidos está em jogo”. O autor da trilogia de Nova York, com legiões de leitores em todo o mundo, passou à ação aos 73 anos, liderando um movimento de escritores contra o presidente republicano que disputa a reeleição na semana que vem, e assiste atônito e preocupado a uma campanha que desafia os limites de sua prodigiosa imaginação.
Pergunta. Mesmo para um romancista como o senhor, seria difícil imaginar uma campanha como a que estamos vivendo...
Resposta. É uma loucura. É o tipo de narrativa complexa própria da literatura ruim. Mas quando Trump adoeceu [de covid-19] me pareceu o tipo de história que Sófocles ou Shakespeare poderiam ter escrito. E leve em conta que vivemos com a possibilidade, por exemplo, de uma espécie de golpe de Estado se Trump perder. Eles parecem dispostos a tentar invalidar a eleição. Na verdade estão dizendo isso, não sei se é blefe ou se têm uma organização em andamento, preparada para destruir o voto. À distância, parece que é o caos total e que eles não têm nem ideia do que estão fazendo. Mas também pensamos isso quatro anos atrás, e deram um jeito de pôr Trump na Casa Branca.
P. Como ficou seu país depois destes quatro anos?
R. Acredito que está provavelmente mais fraco e mais dividido do que nunca nos últimos 150 anos, desde o final da Guerra Civil. Durante décadas o Partido Republicano se moveu cada vez mais para a direita, tanto que é até difícil falar deles como um partido que acredita na democracia. Acreditam no poder. E entre seus fundamentos filosóficos está o fato de que realmente não querem um Estado. Acredito que com Trump o desmantelamento de toda a estrutura pública nos EUA se acelerou de formas que não havíamos visto até agora. Temos uma agência de proteção ambiental que não quer proteger o meio ambiente. Temos uma secretária de Educação que não acredita na escola pública. E assim com tudo. Muitas das pessoas que mais estão sofrendo com as decisões deles os apoia por razões complexas demais, que pouco têm a ver com a política, e tudo a ver com o que podemos chamar de uma guerra cultural americana.
P. E aí chegou uma pandemia…
R. Acho que nunca na vida senti tanta indignação com a forma como problema público foi administrado pelas pessoas no poder. Chamavam de farsa, ou de algo criado pela China. Não assumiram a responsabilidade de administrar uma crise nacional.
P. Há quatro anos, o senhor foi uma das poucas vozes que alertaram que era preciso levar Trump a sério. Por que sabia que ele podia ganhar?
R. Primeiro, pelo sistema que temos, o sistema do colégio eleitoral. É a maneira pela qual um candidato sem a maioria de votos pode ganhar a presidência. Mas senti que havia muito mais apoio a Trump do que diziam as pesquisas e a imprensa. E o que transformou meu otimismo em pavor foi o voto do Brexit na Inglaterra em junho. Achei que, se podia acontecer lá, podia acontecer aqui. É uma parcela semelhante da população – nacionalista, branca, hostil aos imigrantes, temerosa do outro, e irritada por se considerar ignorada pela cultura geral. Há muita gente que se sente assim, aqui e em muitas partes da Europa ocidental. Só que aqui os números são muito grandes.
P. Por que gostam de Trump?
R. Porque os faz se sentirem bem consigo mesmos, e os democratas os fazem se sentir mal consigo mesmos. É uma maneira crua de enxergar, mas é compreensível. Por isso votam nele. Assim como Hitler fez alguns alemães se sentirem bem consigo mesmos. É uma hostilidade furiosa e ressentida em relação uma sociedade em mutação. A América é um país de imigrantes, de gente de todas as origens, cores de pele, religiões, culturas. Muitos celebramos essa diversidade, mas outros não.
P. Seu último romance, 4 3 2 1, retrata o movimento dos direitos civis nos anos 60 e 70. Como viveu a recente mobilização pela justiça racial?
R. Isso me devolveu a fé de que a América pode estar começando a se reexaminar. E isso é bom. Os protestos foram os mais longos e concorridos da história deste país. E, o que é mais importante, muitos brancos começaram a se perguntar, pela primeira vez em suas vidas, como seria crescer sendo uma pessoa negra neste país. Resta ver se isto é algo sustentado e se transforma em parte de uma conversão nacional duradoura. Mas foi grande. Não se pode ignorar. É uma das coisas mais poderosas que vi em toda a minha vida.
P. Os Estados Unidos poderão voltar à normalidade após estes quatro anos?
R. As coisas mudaram para sempre. O mundo em geral, e a América em particular, estão em crise. Temos o grande problema verdadeiro que todos devemos enfrentar, que é a mudança climática. Está chegando rápido. É como um asteroide tremendo que vem do espaço e vai destruir grande parte da Terra. Se não agirmos já, será tarde demais. E o sofrimento nas gerações vindouras será espantoso. Já vemos os primeiros sinais neste país, os piores incêndios e os piores furacões que tivemos em nossa história. E é só o começo. Vai implicar uma nova forma de vida. As pessoas se irritam por usar máscaras na pandemia, imagine os tipos de mudanças que teremos que fazer para reduzir as emissões. Depois há o sistema capitalista norte-americano, que criou uma sociedade tão injusta e tão favorável aos ricos que, a não ser que essas questões sejam abordadas, o país continuará piorando. Tudo isso deve ser abordado. E haverá retrocessos continuamente. Não será fácil. Mas acredito que, se os democratas chegarem ao poder, e o Senado se tornar uma instituição democrática, podem-se aprovar muitas leis que comecem o processo de arrumar algumas das injustiças mais atrozes do país.
P. Como os democratas perderam a capacidade de apelar aos membros da classe trabalhadora?
R. Eles não lhes ofereceram nenhuma razão para votar neles. [Os trabalhadores] estão irritados e ressentidos, e os republicanos os fazem se sentir melhor. Mas o que os fazem se sentir melhor não tem nada a ver com como vai a vida. Simplesmente reforçam a superioridade que muitos sentem sobre os imigrantes, as pessoas de pele escura, e sua etiqueta de brancos por si só lhes dá uma superioridade sobre outras pessoas.
P. As raízes de parte disto devem ser buscadas na presidência de Obama?
R. O problema com a Administração Obama foi o seguinte: teve oito anos de mandato. Os dois primeiros, em que contava com a maioria democrata no Congresso, ele dedicou a impulsionar um plano para a saúde. Isso é o que ele quis fazer primeiro. Pode ser discutível que fosse a melhor estratégia, mas definitivamente era um assunto importante, que nenhum presidente jamais tinha podido resolver. Aprovou isso sem um só voto republicano. É algo chamativo. Muitos estávamos emocionados e inspirados pelo fato de que a América havia elegido Obama e tínhamos um presidente negro na Casa Branca. Pense no simbolismo. Mas eu diria que, para um terço da população, isto era provavelmente a coisa mais horrível que já havia acontecido. Estavam horrorizados e furiosos. Tão amargurados que, imediatamente depois de Obama ser eleito, grupos de direita começaram a criar algo de que ninguém mais fala, que é o Tea Party. O Tea Party foi uma ofensiva da extrema direita para se opor a Obama e aos democratas. E em 2010 ganharam a maioria no Congresso, então Obama não pôde fazer nada. Não pôde aprovar nenhuma lei. E a verdade, os insultos que dedicaram a ele, a falta de respeito… É como se tivessem pegado um homem negro e o tivessem amarrado com cordas. Vendaram seus olhos, colocaram um lenço na sua garganta e lhe deram chutes e socos durante seis anos. Seis anos espancando-o. Então não foi culpa dele. Foi a reação a ele que desatou um racismo neste país, que eu não acreditava que fosse tão profundo. Revelou as falhas tectônicas do nosso país. E alimentou esta guerra cultural que Trump vem travando nos últimos cinco anos, desde que iniciou sua corrida presidencial.
P. O resultado são dois lados irreconciliáveis?
R. O país está tão perigosamente dividido que é difícil imaginar como as duas partes podem sequer conversar. Já não há mais diálogo. É como se estivéssemos em 1861, quando começou a Guerra da Secessão, porque o ódio entre as duas partes é colossal.
P. É sempre o racismo a força por trás de tudo...
R. Sim. Tudo na história dos Estados Unidos volta sempre ao racismo, é o defeito mortal deste país. A escravidão era legal desde o momento em que as colônias começaram. Para construir um país depois da revolução, tínhamos 13 colônias. Em algumas não havia escravidão, porque a economia não dependia dela. No sul, claro, a economia dependia do trabalho escravo. E para que estes Estados pudessem se incorporar à união e ser parte dos EUA, pediram certas concessões do norte, entre elas que a escravidão não fosse declarada ilegal, e que, embora tivessem populações menores, pudessem ter mais representação no Congresso, contando os escravos. Contavam-nos como três quintas partes de um ser humano. Foi um compromisso asqueroso. E estamos pagando o preço desde então. Enquanto não conseguirmos encarar isso, nosso país não poderá se curar. Na Alemanha há museus do Holocausto, não há bandeiras nazistas. Nos Estados Unidos há bandeiras confederadas, e para mim não é diferente de uma suástica. Representa o mesmo. Por isso estes protestos me inspiram, porque parece a primeira vez que a América branca, ou pelo menos parte dela, capta isso. Mas enquanto não for universal não poderemos ficar menos divididos do que estamos.
P. O que acha de Joe Biden?
R. Biden é um democrata moderado. Está na vida pública há meio século. Nunca me agradou particularmente. Acho que muitas das coisas que já fez foram estúpidas. Mas sei que é basicamente uma pessoa decente. Não tem tendências criminais. Quer dizer, estamos sendo governados por um criminoso. Temos um criminoso na presidência atualmente, um mentiroso e um ser humano abominável. Joe Biden é decente. Acredito que se vê a si mesmo em um grande momento da vida norte-americana, e com o peso de Franklin Delano Roosevelt quando chegou ao poder em 1933 em meio à Depressão. Até agora acredito que tenha feito um trabalho bastante bom. Passou meses sem dizer nada, e estava bem. Eu dizia a Siri [Hustvedt, escritora e sua esposa]: “Os democratas poderiam apresentar um tronco de árvore contra Trump, e o tronco ganharia”. Acho que Biden, agindo só como um tronco, fará melhor do que se estiver por aí gritando e agitando os braços. Agora o importante é tirar Trump e os republicanos. Depois nos preocuparemos com Biden.
P. O senhor escreve, na apresentação dos Escritores Contra Trump, que “os escritores estão bem posicionados para defender a democracia”. Em que sentido?
R. Se há algo em que os escritores são bons é em expressar as ideias em linguagem clara e concisa. Os escritores são cidadãos, e muitos de nós entendemos como estas eleições são importantes. Então decidimos nos unir em um grupo e debater o que podemos fazer para contribuir para derrotar Trump. Decidimos que era tarde para tratar de persuadir qualquer um, então nos concentramos em mobilizar as pessoas a irem votar. Porque tudo se reduz a ir votar. Houve 95 milhões de pessoas que não votaram da última vez. É assombroso. Quisemos nos concentrar em gente jovem progressista que não está muito contente com Biden e [Kamala] Harris. Queremos convencê-los de que não votar é votar em Trump. Se depois quiserem pressionar para que sejam mais progressistas, tudo bem. Mas antes temos que fazer que ganhem. Começamos com 80 escritores e agora há mais de 1.700.
P. Este é o momento de maior envolvimento com a política na sua vida?
R. Sempre estive envolvido, mas nunca tão ativamente como agora. Porque sinto que o futuro inteiro da América está em jogo. Se Trump continuar no poder, qualquer aparência de democracia vai desaparecer. E seremos um país diferente, um país autoritário. É uma possibilidade muito feia. E trato de fazer o que puder para que isso não aconteça.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.