Europa teme que os EUA monopolizem o remdesivir e negocia com o laboratório
Washington domina quase toda a produção imediata do antiviral, que por enquanto demonstrou benefícios terapêuticos limitados contra a covid-19
A aquisição pelos Estados Unidos de quase toda a produção dos próximos três meses do antiviral remdesivir, o primeiro remédio aprovado especificamente contra a covid-19, gerou surpresa e mal-estar na União Europeia, assim como entre especialistas e defensores do acesso universal aos medicamentos. Preocupa que o acordo estabeleça um precedente em plena pandemia —e ainda sem a vacina— e dê lugar a um novo cenário em que as operações comerciais limitem o acesso aos medicamentos e enfraqueçam a cooperação internacional frente ao coronavírus.
A Comissão Europeia anunciou por sua vez que negocia com a Gilead para aumentar sua capacidade de produção, permitindo que também os europeus tenham acesso ao antiviral. “A comissária (ministra europeia) da Saúde, Stella Kyriakides, manteve numerosas conversações com o fabricante, e a Comissão (Poder Executivo do bloco) negocia a reserva de doses para os Estados membros da UE”, afirmou o organismo.
O mal-estar de Bruxelas e demais capitais europeias ante as táticas norte-americanas de formação de estoques é evidente. “A Comissão toma nota do anúncio feito pelos EUA”, afirmou o organismo, que já assistiu à batalha em torno das máscaras e da suposta tentativa norte-americana de adquirir o laboratório alemão CureVac, líder na investigação de uma vacina.
A polêmica desatada pela operação chegou nesta quarta-feira à sede da Organização Mundial da Saúde em Genebra, onde, ao ser perguntado sobre o caso, o diretor de emergências, Michael Ryan, afirmou que está tratando de verificar a informação e “suas possíveis implicações”.
Os especialistas consultados na Espanha destacam que o fármaco auxilia no tratamento de alguns doentes, mas que está longe de ser a cura que freará a epidemia. “Segundo o ensaio que o avaliza, reduz de 15 para 11 dias a internação de pacientes com pneumonia que precisam de ventilação com oxigênio, mas sem serem intubados”, explica Eduardo López Briz, do grupo Gênese de avaliação de medicamentos da Sociedade Espanhola de Farmácia Hospitalar.
São os doentes de uma gravidade média, aproximadamente uma quarta parte dos hospitalizados, que por sua vez são menos de 20% dos infectados com sintomas. “A dexametasona, por exemplo, é bastante mais rentável em nível terapêutico. É um corticoide já existente no mercado, barato e que já comprovou que salva vidas”, continua López Briz.
Para Santiago Moreno, chefe de serviço de doenças infecciosas do hospital Ramón y Cajal (Madri), o remdesivir “reduz as hospitalizações, mas não reduz a mortalidade nem diminui as internações na UTI, segundo os resultados preliminares. Falta sabermos ainda muitas coisas sobre este antiviral e estamos à espera de conhecer os resultados de dois grandes ensaios em andamento”.
A gravidade da pandemia do coronavírus acelerou extraordinariamente o processo de aprovação do remdesivir. Os Estados Unidos autorizaram em maio o uso do fármaco como tratamento de emergência. A Agência Europeia de Medicamentos deu na semana passada o primeiro passo para fazer o mesmo na UE, à espera da aprovação definitiva por Bruxelas, que pode acontecer já nesta sexta-feira.
Um tratamento de 12.600 reais
A transação entre o Governo dos EUA e o laboratório Gilead foi divulgada apenas dois dias depois de a empresa anunciar o preço de venda do antiviral nos países desenvolvidos: o equivalente a 2.100 reais por dose. O tratamento habitual, indicado para pacientes maiores de 12 anos, é de seis ampolas em cinco dias, o que situaria o custo do tratamento em cerca de 12.600 reais.
Vanessa López, diretora da ONG Saúde como Direito, que defende o acesso universal aos medicamentos, qualifica o preço de “abusivo”. “Cálculos feitos pela Universidade de Liverpool estimam que o custo de produção mais um lucro razoável seria de um dólar [5,30 reais] por dose”, afirma.
A organização alerta que, como no caso de outros fármacos, “os milionários investimentos de organismos públicos nas primeiras fases de desenvolvimento de novos fármacos acabem produzindo enormes lucros para as empresas farmacêuticas”. “Estes elevados preços e os acordos como o dos Estados Unidos põem em risco o acesso ao fármaco de toda a população que o necessite”, conclui López.
A Gilead destaca que está fazendo “um grande esforço para multiplicar a produção”. “Os prazos estão sendo reduzidos de quase 12 meses para cerca de 6 meses, para assegurar um acesso rápido e o mais amplo possível nesta situação de crise”, defende a companhia, acrescentando que a redução de quatro dias nas internações graças ao antiviral “geraria uma economia hospitalar de 12.000 dólares (63.800 reais) por paciente” nos Estados Unidos.
A Gilead defende em uma resposta por escrito que o acordo alcançado com Washington se deve ao “aumento significativo” da epidemia no país, onde “existe uma necessidade urgente de ajudar a tratar os pacientes afetados”, enquanto “a maior parte da UE e de outros países desenvolvidos reduziu grandemente seus níveis da doença”. O laboratório recorda que sua capacidade de fornecimento é “atualmente limitada” e que “a Gilead é uma companhia global com sede nos Estados Unidos”.
“Reconhecemos a escala global desta pandemia e estamos trabalhando o mais rapidamente possível para permitir o acesso em todo o mundo”, defende a Gilead.
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