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Movimento Me Too, diante do teste da Justiça

O julgamento de Harvey Weinstein por abusos sexuais, que começa nesta segunda-feira em Nova York, é o primeiro e único processo criminal do movimento iniciado em 2017

Da esquerda para a direita, os diretores Robert Rodríguez e Quentin Tarantino, a atriz Uma Thurman e Harvey Weinstein em Los Angeles em 2004.
Da esquerda para a direita, os diretores Robert Rodríguez e Quentin Tarantino, a atriz Uma Thurman e Harvey Weinstein em Los Angeles em 2004.Lucas Jackson (Reuters)

O encontro definitivo do movimento Me Too com o sistema de justiça será nesta segunda-feira, no 15º andar de um bloco de granito art déco que abriga o Tribunal Penal do Estado de Nova York, no número 100 da Center Street, Lower Manhattan. “O que veremos a partir de segunda-feira é o julgamento criminal mais importante nos Estados Unidos no momento”, diz a advogada feminista Gloria Allred. Lá estará sentado pela primeira vez o produtor de cinema Harvey Weinstein para escutar ao vivo e diante de um juiz os relatos de suas supostas vítimas de abuso sexual.

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Allred atende ao telefone em Los Angeles, horas antes de viajar para Nova York. No julgamento contra Weinstein, ela representa Mimi Haleyi. Das quase 90 mulheres que denunciaram publicamente abusos sexuais de Weinstein, em diferentes graus, o Ministério Público de Nova York apresentou acusações somente para duas, Haleyi e outra mulher cujo nome permanece confidencial. Haleyi era uma assistente de produção que afirma que Weinstein abusou dela em um hotel. A outra mulher diz que ele a estuprou em 2013.

As acusações contra Harvey Weinstein na imprensa em outubro de 2017 não só foram o maior escândalo de Hollywood neste século, mas também deram origem ao movimento Me Too, uma profunda mudança na cultura do silêncio sobre o uso do sexo na indústria do entretenimento, que acabou se espalhando pela sociedade e pelo mundo. Os casos relatados chegaram a dezenas em poucas semanas. “Embora tenham sido abertas investigações em Los Angeles, Beverly Hills ou Londres, o único que apresentou acusação formal foi o Ministério Público de Manhattan, e é o único caso em que ele está sendo processado”, explica Allred.

Informações recentes garantem que poderá haver novas acusações em Los Angeles. Mas, por enquanto, o caso 02335/2018 do Tribunal de Nova York é a primeira e única vez que Weinstein, o homem que passou a simbolizar por si mesmo o abuso de poder para obter sexo, vai enfrentar a Justiça. Ele é acusado de um crime sexual em primeiro grau; duas acusações de estupro, em primeiro e terceiro grau; e duas acusações de agressão sexual “predatória”, um termo legal que estabelece uma agravante e se refere ao fato de que o crime faz parte de sua conduta natural. A previsão da corte é que o julgamento dure seis semanas. Weinstein, 67 anos, nega todas as acusações e afirma que todas as relações sexuais foram consentidas. Ele se encontra em liberdade sob fiança de um milhão de dólares (cerca de 4 milhões de reais).

Há vários personagens-chave neste julgamento. Primeiro, o juiz James Burke, que deve presidir o primeiro julgamento do Me Too. Burke, que não permitiu câmeras no tribunal, é um antigo promotor, tem fama de durão e uma certa tendência a se alinhar com a acusação quando tem margem para isso. Até agora, interrompeu todas as tentativas de Weinstein de deslegitimar as acusações. Ele também permitiu o depoimento de até quatro mulheres não diretamente relacionadas às acusações. São testemunhas com os quais a acusação pretende reforçar a ideia de que existiu um padrão de comportamento por décadas.

Uma dessas mulheres será a atriz Annabella Sciorra, 59. Sciorra diz que Weinstein a estuprou em seu apartamento em Nova York em 1993. Sua advogada também é Gloria Allred. O testemunho de Sciorra pode sustentar a acusação de “conduta predatória” buscada pela acusação. Se o júri acreditar na atriz e o considerar culpado disso, além das duas acusações específicas, a pena pode ser prisão perpétua. É por isso que o depoimento de Sciorra será um dos momentos de maior tensão, antecipa sua advogada. “Contar sua história na televisão é muito diferente de fazer isso em um julgamento”, diz Allred. "Exige mais e requer mais coragem. Weinstein tem um exército de advogados e uma defesa muito bem financiada. O interrogatório da defesa vai ser duro.”

Aqui entra outro dos personagens interessantes deste julgamento, a advogada Donna Rotunno. Weinstein a incorporou à sua equipe não apenas por causa da imagem que pode dar de estar sendo representado por uma mulher, mas também porque ela é especialista em defender homens acusados ​​por seu comportamento sexual. Ela é considerada uma interrogadora brutal que esmaga as mulheres. "Posso fazer mais coisas em um interrogatório num tribunal do que um advogado homem", disse ela em entrevista à Chicago Magazine no ano passado. “Mesmo que seja um bom advogado, mas se agir com a mulher com o mesmo veneno que eu, parece um bully. Se eu fizer isso, ninguém move uma pestana. E tem sido muito eficaz", disse Rotunno. Gloria Allred responde: "Vamos ver como isso cai em um júri de Nova York."

A seleção do júri, que pode durar até três semanas, será talvez a parte mais importante do julgamento, do ponto de vista técnico. "A defesa levantará a questão da dificuldade de ter um júri imparcial", disse Paul Mones, advogado de Los Angeles especializado em casos de abuso sexual. "É um caso cercado por muita publicidade negativa e Weinstein tem direito à imparcialidade em seu julgamento, como todo mundo. Estive em vários casos de alto nível e acho que será um problema." Quando um caso é tão conhecido, praticamente qualquer cidadão pode ter formado preconceitos sobre o acusado apenas ligando a televisão. "Houve uma cobertura muito extensa e seus advogados têm todo o direito de duvidar que os jurados serão imparciais. No final, encontrarão um júri, mas isso levará tempo.”

Para Mones, o mais interessante é "ver como a acusação de abuso de poder se desdobra no julgamento". "Tecnicamente, essas mulheres não eram suas empregadas. Isso vai ser interessante. Além disso, existe o fato de que é muito raro que uma pessoa tão importante, com tantos recursos financeiros, chegue a julgamento por uma questão criminal. É muito raro porque normalmente são pessoas que têm a capacidade de manipular o sistema.”

É por isso que o próprio fato de Weinstein se sentar no julgamento para ouvir as acusações que acabaram com ele na imprensa já representa um antes e um depois nesse tipo de caso. Pode-se argumentar que o precedente imediato é a condenação de Bill Cosby, mas seus problemas com a Justiça tinham começado muito antes do movimento #MeToo e não têm tanto a ver com o abuso de poder. A importância deste caso é que “eleva o perfil legal e social destas questões”, diz Mones. "O abuso sexual de mulheres no trabalho não recebia a atenção que merecia. No total, 75% das mulheres sofreram algum tipo de assédio. Dependendo do que acontecer neste julgamento, outros promotores podem decidir avançar e investigar esses casos com mais zelo.”

E, por fim, estão olhando para aquelas mulheres que nunca contaram e cujo assediador não era Harvey Weinstein. "O que quer que seja decidido neste caso e como isso vai se desenrolar naquela sala, a maneira como as testemunhas serão tratadas, tudo isso enviará uma mensagem muito importante às sobreviventes que estão assistindo", diz Erin Robinson, porta-voz da associação Rainn, que defende vítimas de crimes sexuais há 25 anos. O telefone da Rainnm de ajuda às vítimas, recebe mais de 25.000 chamadas por mês de todo os Estados Unidos.

Robinson explica a importância de trazer esses casos à tona para que as vítimas decidam denunciar. "No dia seguinte à audiência do juiz Kavannaugh no Senado, as ligações aumentaram 338%."

O julgamento “é uma prova de fogo”, diz Robinson. “Se eu tomar a decisão de denunciar, vão me tratar do mesmo jeito que a essas testemunhas? O que vai acontecer comigo? O que gostaríamos de ver com este caso é que as sobreviventes possam dar o passo de denunciar, que acreditem nelas e sejam apoiadas, mesmo se for uma pessoa poderosa”. O que acontecer a partir desta segunda-feira em Manhattan “vai enviar uma mensagem muito poderosa”.

A viagem do Olimpo ao esgoto

Em outubro de 2017, Weinstein passou em uma semana de ser um dos produtores mais laureados de Hollywood para ser sinônimo dos esgotos do negócio. Com suas empresas Miramax e The Weinstein Company, fundada com seu irmão, ele é responsável por grande parte dos filmes dos anos noventa. Ganhou o Oscar de melhor filme em 1998. Foi o padrinho do sucesso de uma geração de atrizes, como Gwyneth Paltrow e Uma Thurman. Quando as primeiras acusações contra ele surgiram na imprensa, passou ao ostracismo em um fim de semana e sua queda provocou uma onda de denúncias silenciadas durante anos.

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