_
_
_
_
_

Justiça chega tarde para os três de Baltimore

Alfred Chestnut, Ransom Watkins e Andrew Stewart foram condenados quando eram adolescentes por um crime que não cometeram. 36 anos depois, deixam a prisão

Da esquerda para a direita, Alfred Chesnut, Andrew Stewart e Ransom Watkins depois de serem libertados.
Da esquerda para a direita, Alfred Chesnut, Andrew Stewart e Ransom Watkins depois de serem libertados.T. KIMMELMAN (AFP) / THE WASHINGTON POST
Amanda Mars

Casas abandonadas e semidestruídas, janelas fechadas com tábuas e portas com cadeado se multiplicam por Harlem Park, em West Baltimore, Estados Unidos, uma das regiões mais maltratadas desta cidade, por si só dura. A escassez de carros estacionados, de lojas e inclusive de anúncios limitam as referências temporais e é possível viajar no tempo, até décadas atrás, para épocas igualmente nefastas.

Em 18 de novembro de 1983, um estudante de 14 anos chamado DeWitt Ducket foi morto a tiros em um corredor de sua escola quando tentaram roubar a jaqueta que vestia. Era uma dessas jaquetas esportivas da Universidade de Georgetown que faziam furor na época. Alguém encontrou DeWitt por volta das 13h30 e a exigiu, os dois garotos que o acompanhavam fugiram e em seguida houve o tiro. A polícia encontrou uma pista rápida para seguir: naquela manhã, três adolescentes de outra escola haviam faltado às aulas e vagavam por Harlem Park vendo amigos e irmãos que tinham ali. A má sorte se completou porque um deles, Alfred Chestnut, tinha a mesma jaqueta em casa, dada pela mãe.

A polícia concentrou a investigação nos três rapazes e no Dia de Ação de Graças, menos de uma semana depois do crime, eles foram presos. De nada serviram suas declarações de inocência, as dúvidas das testemunhas e a ausência de provas incriminatórias. Alfred Chestnut, Ransom Watkins e Andrew Stewart foram condenados à prisão perpétua. Os anos passaram e eles se tornaram adultos na prisão, mas Chestnut nunca jogou a toalha. Em 25 de novembro, depois de 36 anos de prisão por um crime que não cometeram, foram libertados. Agora são três homens livres com mais de 50 anos que não pisavam na rua desde meados dos anos oitenta. A tecnologia é outra, a sociedade também, mas as ruas que os enterraram permanecem iguais e o inexplicável de sua história também.

Mais informações
Otra miniserie muy potente a la que no hay que perder de vista en los premios es esta historia basada en el caso real de los Cinco de Central Park, cinco adolescentes que fueron acusados y condenados por una brutal violación en grupo que no cometieron. Ava DuVernay es la creadora y directora de esta historia que logra que grites a la pantalla con indignación. Muchas posibilidades para llevarse el premio de mejor miniserie y ojo a un brillantísimo Jharrel Jerome.
‘Olhos que Condenam’: Cinco mártires no Central Park
iza cantora representatividade
Lucas Santos: “Saí da favela, mas não posso ficar alienado enquanto matam negros e pobres”
Lucas Santos em treino com a seleção brasileira.
Iza: “Se eu estiver no horário nobre da TV, mesmo calada, já tô dizendo muito”

Relatórios policiais que agora vieram à luz refletem a injustiça da investigação. O detetive que a dirigiu, David Kincaid, mostrou as fotos de Alfred, Ransom e Andrew a várias testemunhas e estas não os identificaram nas duas primeiras vezes, mas insistiu durante semanas até que o fizeram. Pelo contrário, logo depois do crime, várias testemunhas apontaram outro jovem, Michael Willis, de 18 anos, como autor do crime. Houve quem o viu correr e atirar com uma pistola e quem o encontrou com a famosa jaqueta naquela noite, mas a polícia ignorou isso e preferiu seguir a pista dos outros três rapazes. Tampouco mudou as coisas o fato de a mãe de Chestnut, segundo Alfred, ter mostrado o recibo de compra da jaqueta idêntica à do menino assassinado.

“Várias coisas falharam ao mesmo tempo, como em muitos casos semelhantes, houve um trabalho policial ruim e problemas com a identificação por parte das testemunhas. As testemunhas eram crianças, que foram interrogadas pela polícia sem a presença dos pais, e soubemos que foram ameaçadas para que dessem a versão contra os três”, explica a advogada Brianna Ford, que junto com Elizabeth Hilliard, defensora pública, representou Alfred Chestnut.

O homicídio de Harlem Park, o primeiro ocorrido em uma escola na história de Baltimore, aconteceu em plena onda de crimes motivados por roupas –por uma jaqueta, por tênis de marca– que atemorizou a população nos anos oitenta. A polícia e a Justiça tinham pressa em encontrar culpados. E uma vez conseguida a condenação, explica a advogada Ford, não é fácil corrigi-la, pois alguns promotores “estão mais preocupados em manter as condenações conseguidas do que em fazer justiça”.

O verdadeiro assassino não responderá diante dela. Michael Willis, que depois da tragédia acumulou um bom histórico de prisões por porte de drogas e agressão, morreu em 2002, baleado no mesmo bairro. A tentação de pensar em uma espécie de justiça poética deve ficar longe do que acontece nesta cidade, onde esses fatos são o pão de cada dia. Baltimore, com 600.000 habitantes, tem cerca de 300 homicídios por ano desde 2015, o mesmo número que Nova York, mas com uma população 13 vezes menor.

O criador da The Wire, a famosa série de televisão que retratou a violência em Baltimore, é nem mais nem menos que um repórter de crimes do Baltimore Sun. Antes de seu sucesso fenomenal, David Simon havia escrito um livro, Homicide (1991), em que relata um ano passado com a polícia da cidade e fala sobre o detetive do caso de Harlem Park, Kincaid. O relato inclui precisamente uma reunião em uma prisão entre o detetive e um dos rapazes condenados, Watkins, que lhe pergunta se ele dormia bem à noite. O outro, que continua convencido da culpa dos rapazes, responde que sim.

É impossível não perguntar se teria acontecido a mesma coisa caso Chestnut, Watkins e Stewart fossem brancos. Para a advogada do primeiro, o viés racista não está claro, pois a vítima e vários investigadores também eram afro-americanos, como a maior parte dessa comunidade. Para Shawn Armbrust, diretora da Mid-Atlantic Innocence Project, organização que trabalhou com o Ministério Público de Baltimore na absolvição, também é difícil se pronunciar sobre esse episódio concreto, embora, em geral, “em muitos desses casos, o racismo é percebido nas assunções feitas sobre os rapazes afro-americanos, eles são vistos como capazes de serem violentos, não são tratados como indivíduos, mas como membros de uma comunidade”.

Sua organização, assim como a Innocence Project Clinic da Universidade de Baltimore, à qual Ford pertence, trabalha em vários casos de pessoas que ficam presas durante anos apesar das evidentes fragilidades da acusação. As notícias de absolvições se multiplicaram em todo o país nos últimos anos graças aos avanços da tecnologia e, principalmente, a algo tão aleatório quanto a sorte. Que o promotor da jurisdição correspondente queira se envolver ou que os registros policiais tenham sido mantidos depois de décadas, que não tenham sido extraviados ou destruídos em um incêndio, é a diferença entre o tudo e o nada para os inocentes presos. O caso de Harlem Park se deparou com Marylin Mosby, a procuradora do Estado de Maryland para a cidade de Baltimore, que desde que chegou ao cargo em 2015 iniciou uma espécie de cruzada. Criou uma unidade especializada para analisar casos desse tipo e, com os três presos agora libertados, já são nove as pessoas que saíram da prisão.

No último dia 25, três dias antes do Dia de Ação de Graças, quando Chestnut abraçou sua mãe, Sarah, diante de uma nuvem de jornalistas, disse: “Quero viver o resto da minha vida, humilde e pacífico, como sou”. Stewart falava do futuro incerto: “Quando me disseram que estava livre, eu não sabia como parar de chorar, um amigo me disse que minha viagem estava acabada, mas não é assim, tenho de aprender a viver agora”.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_