O país de Pelé se rende a Maradona

Brasil deixa de lado a histórica rivalidade entre as duas pátrias do futebol, encarnada pelos dois ídolos mundiais, para dar adeus ao astro argentino

Pelé e Maradona, durante uma cerimônia de premiação em 1987, na Itália.AP
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Brasil, o país de Pelé, se rendeu nesta quarta-feira a Diego Armando Maradona, sem nuances, assim que sua morte foi divulgada. A histórica rivalidade com a vizinha Argentina, a hostilidade entre os seguidores desses dois magos da bola, as comparações e o desrespeito ao argentino por parte da torcida brasileira foram imediatamente deixados de lado para dar lugar a emotivas homenagens ao astro falecido. A reação de Pelé veio na forma de tuíte: “Eu perdi um grande amigo e o mundo perdeu uma lenda. Ainda há muito a ser dito, mas, por agora, que Deus dê força para os familiares. Um dia, eu espero que possamos jogar bola juntos no céu.”

Até agora, falar de Maradona no Brasil trazia duas comparações inevitáveis. Primeiro com Pelé, pelo título imaginário e subjetivo de “melhor jogador de todos os tempos”. O Rei do futebol brasileiro contra o Deus do futebol argentino, expoentes de épocas distintas. A segunda comparação colocava Maradona frente ao brasileiro com quem ele realmente competiu: Zico. Dois dos melhores camisas 10 dos anos oitenta. Rivalizaram em alguns clássicos Brasil-Argentina, incluindo a Copa do Mundo de 1982, na Espanha, quando Zico marcou, Maradona foi expulso e o Brasil venceu. “Sempre fomos rivais, mas isso foi no campo. Ele foi o maior da minha geração”, resumiu Zico.

As comparações de gols e títulos entre Maradona e Pelé foi substituída por um vídeo antigo, de quando Maradona convidou há 15 anos seu grande antagonista dentro e fora do gramado para seu programa de televisão, La Noche del 10. De camisa e paletó, num estúdio de TV, o camisa 10 da Albiceleste e o 10 da Verde-e-amarela protagonizaram um momento inesquecível de passes de cabeça.

A morte prematura de Maradona mudou subitamente o roteiro dos programas esportivos de quarta-feira, o único dia, juntamente com o domingo, consagrado ao futebol na TV aberta. Jornalistas brasileiros que confessaram ter se apaixonado pelo futebol graças ao argentino (jovens demais para ver Pelé) se esqueceram dos jogos da semana para recordar o ídolo e partidas com jogadores que não entram em campo há mais de duas décadas, mas que nunca deixaram de ser relevantes.

A notícia ocupou as manchetes dos jornais digitais, enlutou as redes e abriu o Jornal Nacional. “O universo do futebol perde um astro de primeira grandeza”, disse, solene, a apresentadora. Em seguida, veio a imagem de um fã agitando uma bandeira albiceleste com a frase: “Deus é argentino”.


Maradona era duas décadas mais jovem que Pelé. Ambos fizeram aniversário em outubro. Pelé comemorou os 80 confinado em sua casa pelo coronavírus, enquanto Diego chegou aos 60 afetado por seus problemas de saúde. As personalidades de ambos eram diametralmente contrapostas. Suas atitudes e posições fora do campo também, mas evidentemente seus caminhos muitas vezes se cruzaram.

Em 1979, Maradona veio ao Brasil conhecer o único tricampeão do mundo. O Santos, time em que Pelé jogou durante toda sua carreira brasileira, lembrou, após a morte do argentino, que nos anos noventa negociou a contratação de Diego com a intermediação do Rei. A iniciativa não prosperou. Maradona pedia muito, segundo o clube. Tampouco frutificaram as tentativas do São Paulo, do Palmeiras e do Flamengo de trazer às terras brasileiras o herói do Boca Juniors.

Romário, que é senador há várias legislaturas, lamentou o falecimento do amigo – e da lenda. “Dos jogadores que vi em campo, ele foi o melhor”, afirmou.

Jair Bolsonaro manteve silêncio sobre a notícia que comoveu o mundo, coisa que também fez diante de mortes de importantes figuras da cultura brasileira. Justamente na semana passada, um tuíte do presidente ressuscitou a eterna rivalidade futebolística (e política) entre os astros argentino e brasileiro. Era uma foto de um sorridente Pelé mostrando uma camiseta autografada para o mandatário.

Os ex-presidentes esquerdistas Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff elogiaram, por outro lado, as firmes e públicas posições políticas de Maradona. “Ele continuou jogando para o povo pobre no mundo inteiro”, disse Lula no Twitter. Dilma destacou que o craque argentino deve ser lembrado por sua defesa dos direitos dos latino-americanos “à soberania, à democracia e à justiça social”. Para o ex-governador Ciro Gomes (PDT), que também disputa espaço na esquerda brasileira, Maradona foi “um símbolo em um dos momentos mais duros da história do país”.

Nos jogos da Seleção Brasileira, nasceu anos atrás uma música que elogia Pelé e despreza seu rival. “Mil gols, só Pelé. Maradona cheirador”, diz um verso, em alusão à dependência de drogas do argentino. A canção não foi ouvida quando ele morreu. Por sua vez, o ex-jogador e comentarista Walter Casagrande, o Casão, fez uma confissão emocionado. “Sou dependente químico e, quando um dependente químico morre por causa da droga, é uma derrota para todos os dependentes, não só para ele (…). Fiquei internado um ano e sei a dor e dificuldade que o Maradona deve ter passado. Eu corri risco de morte várias vezes, como ele (...). Poderia ter sido comigo.”

O fato de que em tão pouco tempo seus rivais da vida inteira tenham perdido Maradona e Quino, pai da Mafalda, chocou muitos brasileiros.

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