Maradona, intangível no auge e espetacular na queda

De maneira simbólica, jogador morreu num tempo de estádios vazios. Hoje, o futebol sem gente recorda com mais força quem no passado lotou as arquibancadas até o céu

Torcida do Napoli recorda Diego no estádio San Paolo, em 2017.ROBERTO SALOMONE (AFP)

Faz alguns anos, entrei em um táxi de Buenos Aires transformado em capela sobre rodas. Por todo lado havia fotos de Diego Armando Maradona. Logicamente, falamos da divindade que presidia aquele altar. “Nem minha mulher nem minhas namoradas nem meus filhos nem meus amigos me deram tanta felicidade como Diego”, exclamou o motorista, apontando para a sua nuca, tatuada com o canônico número 10.

A mais tempestuosa torcida do planeta encontrou no Pelusa um ...

Faz alguns anos, entrei em um táxi de Buenos Aires transformado em capela sobre rodas. Por todo lado havia fotos de Diego Armando Maradona. Logicamente, falamos da divindade que presidia aquele altar. “Nem minha mulher nem minhas namoradas nem meus filhos nem meus amigos me deram tanta felicidade como Diego”, exclamou o motorista, apontando para a sua nuca, tatuada com o canônico número 10.

A mais tempestuosa torcida do planeta encontrou no Pelusa um ídolo à sua medida, o filho pródigo do subúrbio de Vila Fiorito que conseguiria algo além de ser o melhor jogador de futebol do mundo: triunfar contra qualquer prognóstico. Suas principais façanhas dependeram do estranho estímulo de não parecerem possíveis.

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Capaz de dominar uma tangerina como se fosse de uma bola, Diego exerceu o virtuosismo na várzea e nos estádios. Mas não se consagrou por essa magia. Poucos tiveram sua habilidade para o drible, mas sua têmpera mítica se forjou na adversidade e inclusive na paranoia. As más notícias o levavam a conseguir coisas inéditas.

Em 1986, chegou à Copa do México com poucas chances de erguer a taça. A seleção treinada por Bilardo tinha sido muito questionada na fase eliminatória. Nesse ambiente hostil, Diego mostrou a peculiar fibra dos heróis. O dramatismo era seu aperitivo. Antes de cada jogo, o canhoto sob a maior pressão no mundo dormia a profunda sesta dos inocentes.

No México, causou a impressão de que qualquer outro time seria campeão se ele estivesse à frente. Diego representava A Diferença. O mesmo aconteceu na sua passagem pelo Napoli, que vinha de mais de meio século sem conseguir o scudetto. Os zagueiros italianos o transformaram na pessoa mais chutada da história, e também isso lhe servia de estímulo.

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Contudo, seu principal prodígio foi intangível: a liderança dentro de campo. Amante do excesso, chegou ao bastião da ópera para entoar a ária dos que rompem suas correntes. O estádio San Paolo viu Espartaco nas quatro linhas. Ao contrário de tantos astros que se isolam dos demais, Diego exerceu um contágio misterioso. Todos jogavam melhor porque ele estava em campo.

É concebível imaginar que em 1970 o Brasil poderia ter ganhado a Copa sem Pelé. Impossível achar o mesmo da Argentina em 1986.

Eu estava no Estádio Azteca quando Diego anotou contra a Inglaterra o melhor gol ilegal e o melhor gol legal na história das Copas. Para um torcedor, é difícil encontrar outro dia que rivalize com aquele. Depois do jogo, o Pelusa mostrou com picardia outra de suas qualidades, a capacidade de criar mitologias imediatas. Interrogado sobre o tapa que terminou nas redes da Inglaterra, disse: “Foi a mão de Deus”.

A turbulenta e contraditória vida de Diego longe dos gramados fez dele um dos principais expoentes do melodrama latino-americano. Muitas vezes chorou diante das câmeras, arrependendo-se de seus erros. Nenhuma outra figura pública admitiu tantas vezes ter feito merda. A FIFA se aproveitou do seu vício para prejudicá-lo por suas críticas à máfia dos dirigentes, e a mídia o transformou em uma presa. Em meio a esse turbilhão, formulou outra frase essencial: “A bola não se mancha”. Discípulo acidental de santo Agostinho, se debruçou sobre o inferno para entender que o jardim dos gols era o paraíso. Ali foi o mais dedicado dos companheiros. Quando o veterano Ricardo Bochini entrou em campo na Copa do México nos últimos minutos de uma partida para que provasse o sabor da glória, Diego lhe passou a bola dizendo: “Toma, professor”.

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Humilde no gramado, longe dele pecou de todas as soberbas e foi espetacular em suas quedas, mostrando um repertório emocional digno de Puccini.

De maneira simbólica, morreu em um tempo de estádios vazios. Hoje, o futebol sem gente recorda com mais força aqueles que no passado lotaram as arquibancadas até o céu.

Endeusado pelos seus, não perdeu nenhuma chance de se mostrar vulnerável. Talvez seu destino estivesse previsto em um conto de Borges. O protagonista de O imortal bebe água de um rio arenoso que concede a vida eterna. Esta graça lhe proporciona uma existência onde tudo se reitera sem sobressalto. Ao cabo de algum tempo, entende que a autêntica sorte depende da fugacidade. Convencido de que só o precário pode ser entesourado, busca outro rio que conceda a morte.

Aposentado, Maradona quis causar-se dano de tantas formas que se tornou o garoto-propaganda ideal de uma empresa de seguros. A maneira de conviver com seu personagem consistia em tratar de aniquilá-lo. Viveu seus últimos anos como os minutos de acréscimo que o árbitro concede, até chegar aos três apitos que nenhum de nós quer ouvir.

Já imortal, Diego Armando Maradona tocou, finalmente, a mão de Deus.

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