Os argentinos que me desculpem, mas Diego Maradona não é só deles
Muito antes do FBI derrubar metade dos cartolas da Fifa, a oligarquia que mandava no futebol mundial temia Dieguito. Junto com seus dribles vinha sua rebeldia de exigir direitos trabalhistas e de chocar o mundo dos ídolos amestrados com sua voz dissonante
Os argentinos que me desculpem. Mas Diego não lhes pertence. Pertence a todos nós. Não vestia a camisa de uma nação, nem o número 10 de um clube. Maradona entrava em campo levando consigo a genialidade, complexidade e rebeldia da humanidade. Muito antes do FBI derrubar metade dos cartolas, muito antes do desmonte do poder da Era Havelange-Blatter, das contas bloqueadas, das algemas e da pressão de patrocinadores, a oligarquia que mandava no futebol mundial temia um alguém desarmado: Diego Maradona.
A carreira do argentino se confundia não apenas com seus excessos fora de campo. Mas com seu combate contra a corrupção e a injustiça promovida por aqueles no poder. De um bairro pobre de um pais na periferia do mundo, desembarcou no futebol no momento em que o esporte se expandia financeiramente pelo mundo.
Mas junto com seus dribles vinha sua rebeldia de fazer as perguntas incômodas, de exigir direitos trabalhistas e de chocar o mundo dos ídolos amestrados com sua voz dissonante. Jamais se limitou a entrar em campo e fazer sua parte. Jamais aceitou que deveria se silenciar em temas políticos, por mais contraditórios que fossem suas escolhas.
Logo no Mundial de 1986, no México, Maradona ousou ensaiar uma greve de jogadores diante da insistência da Fifa de promover partidas em pleno calor do meio dia. Perdeu. E parece ter transferido ao campo a explosão, como se dissesse aos demais: “venham tentar me parar”. Quatro anos depois, sentindo-se injustiçado pelo segundo lugar no Mundial da Itália, se recusou a dar a mão para João Havelange na entrega de medalhas. Acabou consumido e os casos de doping serviram como uma luva para que os oligarcas da bola o silenciassem. Jamais conseguiram.
Nos anos seguintes, mesmo mergulhado em sua crise existencial e prisioneiro de sua fama, não perdia o foco ao denunciar a corrosão e decadência dentro da entidade que mantinha o monopólio sobre o esporte mais popular do planeta. Sua voz de anti-herói se perdia num emaranhado de paixões, de perdições. Mas o recado era claro de que o futebol havia sido tomado pela imoralidade, inclusive a sua. Do lado da Fifa, a ordem era a de destruir a reputação do argentino. Havelange chamou Maradona de uma pessoa “sem rumo”, “desorientado e fora de si”. Qualificou-o como um toxicômano. Era como se o orgulho de ter um gênio no esporte fosse proporcional ao prazer de ver sua derrocada ao abismo.
O argentino jamais retribuiu com gentilezas. Maradona ironizava o fato de o dono do poder no futebol ter se dedicado a um esporte que usava apenas as mãos: o waterpolo. Sepp Blatter também conheceu sua fúria. “A Fifa se transformou num campo de jogo para os corruptos”, disse o argentino. Para ele, a entidade era uma “dolorosa vergonha para quem ama o futebol”. Quando o castelo de areia desmoronou em 2015 e dirigentes foram presos, os alertas de Maradona pareciam ecoar naquelas salas da entidade como um tango repleto de ironias.
Eduardo Galeano diria que Maradona foi adorado não apenas por seus malabarismos. Mas por ser sujo, pecador e o mais humano dos deuses. “Qualquer um poderia se reconhecer na síntese ambulante das fraquezas humanas”, escreveu. Sobre o argentino, o mesmo escritor uruguaio alertaria que “deuses não se aposentam, por mais humanos que sejam”. Em 2020, um ano em que o luto teima em se fazer presente, a frase precisa ser revista. Deuses não morrem, por mais humanos que sejam.
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