Rama, do Banco Mundial: “Países que consigam controlar a pandemia serão mais atrativos para investidores”

O banco vê 2021 como um ano de transição, com menos probabilidade de quarentenas longas e considera que a maior parte da região não estará vacinada num nível satisfatório até o fim de dezembro

Martin Rama, economista-chefe do Banco Mundial para América Latina e Caribe.

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A América Latina é hoje umas das regiões mais afetadas no mundo pela pandemia de covid-19. Mas, apesar do quadro complexo, a economia brasileira tem amortizado os estragos da crise sanitária, segundo Martin Rama, economista-chefe do Banco Mundial para a região e Caribe. “Mesmo com pouco espaço fiscal, houve um estímulo grande, dirigido às famílias”, afirma ele sobre o auxílio emergencial direcionado à população mais vulnerável. Na avaliação de Rama, o Brasil também foi beneficiado pela recuperação rápida da economia chinesa.

Traçar os rumos econômicos daqui para frente ainda é tarefa difícil. O banco vê 2021 como um ano de transição e considera que a maior parte da América Latina e Caribe não vai estar vacinada num nível satisfatório até o fim de dezembro. O economista uruguaio, que participou na semana passada de um fórum virtual da Associação Brasileira de Desenvolvimento (ABDE), avalia que a saída da crise vai depender muito da dinâmica da pandemia. “Vemos cada vez menos probabilidade de quarentenas longas e se as pessoas saem para trabalhar também há menos necessidade de dar apoio às famílias diretamente”, explica. Confira os principais trechos da entrevista:

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Pergunta. O Banco Mundial melhorou sua previsão econômica para a América Latina e o Caribe em 2021, com um crescimento projetado de 4,4%. De onde vem o otimismo?

Resposta. Revisamos nossa estimativa para 2021 para cima, mas a de 2020 foi revista para baixo. O que vimos foi uma queda mais profunda no ano passado então volta agora ao mesmo ponto. O que estimávamos há um ano, a queda de 2020 e a recuperação neste ano é mais ou menos o mesmo com as novas revisões. Mas há razões para otimismo. Houve aspectos que foram melhores do que esperávamos há um ano. Um deles é o comércio de bens, que se recuperou notoriamente, e também as remessas de importação para vários países. Calculamos há um ano uma queda de 19% das importações e basicamente houve um aumento de 20% em muitos dos países. Nós também mantivemos, em geral, o acesso aos mercados financeiros. Há um ano, a saída de capitais de países emergentes era maior do que a ocorrida na última crise financeira global. Havia muito medo de perderíamos mercado. Mas olhando para 2020, a gente pode emitir mais dívida em mercados internacionais que em 2019 e com juros baixos. São três boas notícias. E ainda no contexto de melhora da economia da China EUA.

P. Qual acredita que foi o efeito de governos negacionistas sobre a pandemia, como o de Jair Bolsonaro, para a crise?

R. Fomos aprendendo à medida que avançamos e a soluções são diferentes em países grandes e pequenos. Nosso enfoque foi olhar os resultados. E uma análise que fizemos foi olhar o excesso de mortalidade e como economicamente cada país se saiu diante da crise. Quanto pensávamos que iam crescer assim que começou a pandemia e quanto de fato cresceram. A situação da América Latina é muito variada.

P. Ainda que economicamente o Brasil tenha se saído melhor do que as primeiras previsões do Banco Mundial, a imagem do país está desgastada internacionalmente. Somos o segundo país com maior número de mortes, o terceiro em contágios. Isso não impacta a economia?

R. É difícil dizer, mas acho que os investidores olham o desempenho e o crescimento do país. Efetivamente, os países que consigam controlar a pandemia vão se tornar mais atrativos, o turismo vai voltar. É claro que conseguir vacinar a população e controlar a pandemia é uma prioridade, estamos ainda na metade de tudo isso. Acho que ainda é cedo para julgar o que funciona e o que não.

P. Em grande parte da região enfrentamos o problema da informalidade de empregos e do próprio desemprego. Como será a recuperação do mercado de trabalho e qual o principal desafio?

P. De algum modo, na América Latina sempre tivemos a impressão que iríamos no sentido parecido ao do modelo europeu, onde as pessoas são assalariadas e possuem seguridade social. E vamos mais para um mundo de trabalhadores próprios, que trabalham em plataformas, onde não está claro quem é o empregador. Isso gera vários desafios. Um é a digitalização, e a metade da região não tem bom acesso a internet, parte da população pode ficar de lado. E há uma área que vemos como fundamental que é repensar a proteção social. Hoje, temos um boom de pessoas fazendo delivery, jogados na informalidade. Mas, pelo menos, temos as informações dessas pessoas. Não poderíamos pensar em sistemas que não precisem ser baseados na antiguidade com o empregador, não importa se hoje a pessoa trabalha em uma plataforma e amanhã na construção. Se há informação e a pessoa segue contribuindo podemos pensar numa formalização distinta, mas com proteção social. O desafio é que a tecnologia vai mais rápida do que a política.

P. Seria função do Estado pensar em uma nova forma de abarcar essas pessoas?

R. Sim. Temos um sistema hoje pensado para uma lógica de empregado e empregador e já não vai ser provavelmente a lógica daqui para frente para a maior parte da força de trabalho. Temos que pensar em mecanismos que dão os benefícios da formalização às pessoas que trabalham em plataformas novas. Com os novos modelos do mercado de trabalho é preciso pensar a formalização de outro modo.

P. Em grande parte da América Latina fechar as escolas foi a medida encontrada para combater a propagação do vírus. Muitas escolas estão há mais de um ano com aulas apenas de forma remota. Mas muitos alunos não têm acesso à tecnologia. Qual a melhor alternativa para a região?

R. É uma inquietação. A educação à distância é um bom complemento da educação presencial, mas não consegue substituir. Sempre que seja seguro do ponto de vista da saúde é melhor manter as escolas abertas. No ano passado, as escolas ficaram muito mais tempo fechadas do que deveriam. Segundo um dos últimos informes do Banco Mundial, a perda educacional da América Latina foi a maior do mundo. Foi aqui na região que se manteve as escolas por mais tempo fechadas. E teve uma época que isso foi excessivo porque na primeira onda as crianças não eram tão contagiosas, agora mudou um pouco o perfil. Se possível, as escolas devem ser as últimas a serem fechadas e as primeiras a abrirem.

A perda educacional da América Latina [durante a pandemia foi a maior do mundo.


P. O Banco Mundial defende mais participação do setor privado na saúde. A pandemia evidenciou a importância de um sistema público forte. O BM mudou seu entendimento sobre a participação privada?

R. O Banco Mundial é a favor de sistemas universais. Há perguntas de como desenhá-los e há mais de um modelo que funciona. Financiamento pelo lado da oferta e o sistema é público, financiamento pelo lado da demanda, o Estado é o que fornece os recursos, mas há fornecedores que competem pelos serviços. Se olharmos as experiências do mundo, há sistemas muito diferentes com vantagens e desvantagens. A questão é a eficiência dos gastos públicos, tanto se é com provisão dos Estado ou se são privados.

P. Falando em privado x público. O que opina sobre a compra de vacinas pelo setor privado?

R. O principal problema que enfrentamos mundialmente é que a oferta de vacinas é menor que a demanda. Qual o melhor mecanismo para redistribuir essa oferta? A compra da vacina em grande escala necessita neste momento de uma política de Estado. É possível que dentro de um ano, quando houver suficiente oferta de vacinas, a gente possa começar a discutir outros mecanismos. Mas agora garantir imunizantes suficientes para toda a população é um problema de política pública.

P. As projeções indicam que com uma nova onda forte de covid-19 e uma vacinação ainda lenta, o Brasil pode entrar em uma recessão. Qual a influência da política econômica do Governo de Jair Bolsonaro nessa crise?

R. Se olharmos para 2020, assim como o Brasil, toda a região da América Latina foi afetada pela pandemia. Para ter cifras comparáveis, não olhamos a quantidade de mortes registradas oficialmente por covid-19, e sim o excesso de mortalidade. Quantas mortes houve no ano passado em comparação com a média dos últimos cinco anos? Na América Latina, em geral, tivemos mais mortes do que apontam os dados oficiais de covid-19. Mas não é o caso do Brasil. A política econômica ajudou muito o Brasil, porque apesar do pouco espaço fiscal, houve um estímulo grande, dirigido às famílias. Isso ajudou a amortizar bastante os impactos e reduziu as previsões de qual seria o estrago econômico. Mas a pergunta sempre foi quanto tempo era possível manter um estímulo desse tamanho com importante consequência na dívida. Era para um período de um ano, mas estamos entrando no segundo ano da pandemia. Outro elemento ajudou o Brasil: a recuperação da Ásia do Leste. A da China, em particular, foi rápida. O comércio de bens está de volta aos níveis de antes da pandemia e a China é um mercado muito importante para a região e o Brasil em particular, o que ajudou a boa performance da agricultura.

P. O auxílio emergencial esteve em um patamar mais alto até o fim do ano, de 600 reais, mas neste ano, começou a ser distribuído só em abril com um valor menor. Qual o impacto?

R. É certo que o estímulo é menor, mas também nesta altura do ano passado a demanda estava muito mais reprimida. Agora temos a economia da China e a economia americana crescendo forte, são os dois principais mercados da América Latina. Há uma situação em que o apoio às famílias é menor, mas o contexto é melhor. Obviamente que essa nova onda que estamos atravessando não é uma notícia boa, justo quando tínhamos otimismo por termos a vacina. Obviamente é um impacto negativo, mas o entorno é melhor que há um ano.

P. Quais países na América Latina devem sair primeiro da crise econômica?

R. Há países com uma segunda onda muito forte e outros em que a vacinação está muito avançada, como no Chile. Outros estão voltando a quarentenas mais restritivas. A forma como os países estão sendo afetados nesta segunda onda será determinante. Nossa impressão é que os governos agora irão ser muito mais reticentes em colocar quarentenas fortes. Em 2020, houve quarentenas mais longas. A esta altura, isso será muito mais difícil. Do lado da oferta, ainda que com a segunda onda, o impacto será menor. Como vai reagir cada país dependerá do contexto externo. Os que importam recursos naturais, minerais, vão ter boa demanda. EUA com sua política de estímulo vai ter um déficit de conta corrente importante, estará importando muito. O que é uma notícia boa para China, mas também pode ser para a América Latina. Pelo lado da demanda, temos situações melhores. Claro que há também o lado financeiro, há países muito endividados. Enquanto as taxas básicas de juros continuem sendo baixas a situação pode ser controlada, mas se elas subirem a situação pode complicar para alguns países.

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P. Os países desenvolvidos estão investindo pesado para conseguir sair mais rápido da crise. Inclusive, se tornou quase que um lugar comum dizer que este é um momento para se gastar. Nem todos os Estados têm condições de gastar a contento. Qual a solução?

R. Há um conjunto de países com dificuldades próprias e que vinham de antes, como Argentina e Equador. Nos demais, os governos estão se perguntando qual a trajetória de consolidação fiscal que precisamos considerar? Até que momento devemos seguir estimulando e qual a hora de cortar? E quando começamos a cortar é pelos gastos? Ou subimos os impostos? O Banco Mundial vê 2021 como um ano de transição, a maior parte da América Latina e Caribe não vai estar vacinada num nível satisfatório até o fim de dezembro. Vemos cada vez menos probabilidade de quarentenas longas e se as pessoas saem para trabalhar também há menos necessidade de dar apoio às famílias diretamente.

P. Por que não acredita que haverá apoios a novos lockdowns e quarentenas mesmo com o agravamento da crise sanitária?

R. A América Latina reagiu muito rápido à pandemia. Ela viu o que estava acontecendo na Espanha, na Itália, e logo já impôs medidas muito similares. Mas a eficácia dessas medidas não foi a mesma. Realizamos estudos da dinâmica da pandemia na região e o que se concluiu foi que as quarentenas foram efetivas em reduzir a velocidade dos contágios, mas muito menos que nos países avançados. E pode-se especular sobre o porquê sucedeu dessa forma. Não é o mesmo pedir que as pessoas fiquem em casa quando elas têm saneamento, espaço físico suficiente do que pedir às pessoas que vivem em um lugar pequeno com condições pobres de higiene. Tampouco é o mesmo pedir para as pessoas que estão com o salário garantido que fiquem em casa, do que exigir de informais que precisam sair de casa para conseguir dinheiro. Como a eficácia dessas restrições na América Latina foi menor em geral, a tolerância das pessoas a novos lockdowns é menor.

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P. Ainda faz sentido hoje defender políticas liberais de Estado mínimo?

R. A pandemia vai trazer muitas mudanças. Algumas são puramente econômicas e estamos vendo, por exemplo, o progresso da digitalização, setores que se contraem e não devem mais ser tão importantes como outros, toda a logística agora de delivery. Mas pode haver também mudanças em política econômica. Está muito claro que a pandemia foi um teste para os sistemas de saúde. Na América Latina, todo mundo tem em princípio cobertura universal, mas o que isso significa de fato é muito diferente. Vimos um choque no setor da Educação, escolas fechadas por muito tempo e há uma grande demanda de que as crianças voltem às aulas. É muito difícil pensar que haja uma redução [de investimento] em saúde e educação. Temos eleições em muitos países nos próximos meses e vemos discussões sobre o papel do Estado. A pandemia pode ter consequência sobre que tipo de direção de política econômica vamos seguir.

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