Fernanda Montenegro: “Tudo já é meio despedida para mim. Uma hora acaba”
Vinte e dois anos após indicação ao Oscar, a grande dama do teatro no Brasil quebra novo tabu ao ser a primeira atriz do país eleita para a Academia Brasileira de Letras
Fernanda Montenegro (Rio de Janeiro, 92 anos) não crê em uma existência sem sonhos. Não importa a idade e nem mesmo as circunstâncias a que estejam submetidas populações de qualquer parte do mundo. Para defender a sua tese, a atriz, recém-eleita para ocupar uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras (ABL), dialoga com William Shakespeare e Pedro Calderón de la Barca. O bardo inglês dizia que enquanto houver sonho, amor e fantasia, haverá esperança. E também que todos somos feitos da mesma matéria que nossos sonhos. Já o poeta e dramaturgo espanhol sentenciou no título de um de seus clássicos que a vida é sonho. Fernanda, o mais importante nome da dramaturgia no Brasil, busca, portanto, nos sonhos, em sua utopia política e cultural, a razão para seguir e enfrentar com coragem as adversidades que lhe afastaram abruptamente do ofício nos últimos 20 meses.
“Nós, atores e atrizes, vivemos uma espécie de esquizofrenia, de doença que é compreendida, aceita pelo público. E todos viajam conosco no sonho, que só se materializa se houver plateia. Não me refiro à TV, cinema, rádio, ao contato através do eletrônico. Não é isso. Digo das presenças carnificadas de atores e público, dos corpos na vertical, visíveis, do contato presencial entre esses para que a magia e os sonhos se deem. É assim que funciona a nossa enfermaria. Creio que a ABL esteja buscando abrir as portas para outros públicos quando me elege. Mas não podemos trabalhar com escalonamentos. Sempre haverá interesse de quem supostamente não seria um consumidor da arte considerada erudita. Se colocarmos uma orquestra tocando Mozart na favela haverá plateia. Essas fronteiras só existem porque não há oferta, embora exista demanda “, analisa Fernanda, durante uma conversa por zoom com o EL PAÍS.
Desde que a pandemia da covid-19 começou, a atriz vem se mantendo reclusa. De imediato, partiu em direção ao sítio da família, localizado em Secretário, distrito da cidade de Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, distante a 98 quilômetros da capital. Lá, por cerca de quatro meses, viveu um cotidiano incomum para quem trabalhou ininterruptamente por cinco décadas, de um domingo a outro. A convivência com a filha, Fernanda Torres, os netos e o genro, o cineasta Andrucha Waddington, acabou resultando em um especial de fim de ano para a TV Globo. Muito pouco para a incansável atriz que tinha uma agenda repleta de apresentações a fim de celebrar os 90 anos. Conseguiu festejá-lo com o lançamento de dois livros, Fernanda Montenegro: itinerário fotobiográfico (2018) e Prólogo, ato, epílogo (2019), bem como por meio de duas sessões do espetáculo Nelson Rodrigues por ele mesmo, uma no Rio e outra em São Paulo.
Na capital paulistana experienciou uma emoção inigualável no palco do Theatro Municipal. O público, que formou uma quilométrica fila ao longo do dia na Praça Ramos de Azevedo para assisti-la, reagiu catarticamente à leitura dramatizada de crônicas autobiográficas de Nelson Rodrigues, um dos mais aclamados e importantes dramaturgos do país. Foi com Nelson, aliás, que estreou como protagonista no cinema em 1965, sob a direção de Leon Hirszman, ao interpretar a obcecada Zulmira da peça A falecida. O filme é um clássico do cinema brasileiro.
“Eu me vi diante do momento mais emocionante da minha trajetória. E olha que vivi muita coisa em mais de 70 anos de carreira. Mas, ali, aos 90, no palco do Municipal com as pessoas me abraçando em aplausos intermináveis, senti algo diferente. Eu pensei e disse: “é a minha cerimônia do adeus”, relembra Fernanda com a voz embargada pela emoção.
A pausa forçada em decorrência da pandemia acentuou a sensação de despedida, mas diante da crise política brasileira, com o país em descompasso econômico e a ascensão de correntes conservadoras impulsionadas pela extrema direita, Fernanda optou em posicionar-se publicamente, fazendo coro a um grupo de artistas com tradição em lutas partidárias, entre esses Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Tão logo o presidente Jair Bolsonaro fora eleito, opondo-se logo nos primeiros meses de Governo de forma veemente ao setor cultural, a atriz aceitou um convite para vestir-se de bruxa e realizar um ensaio que foi parar na capa de uma revista dedicada à literatura. Em um dos registros, apareceu amarrada com livros reunidos a seus pés, sugerindo que o país estaria mergulhando em um processo contrário aos ideais iluministas, alinhando-se ao obscurantismo medieval no qual os teocêntricos encaminhavam todos os que deles divergissem para a fogueira. Fernanda foi duramente atacada por políticos conservadores, cristãos e, sobretudo, pelos eleitores do presidente Bolsonaro. Manteve-se de pé, e sem se deixar intimidar, continua tecendo críticas incondicionais aos rumos da política brasileira.
“Este Governo é uma tragédia. Eu vivi a ditadura no Brasil, um período terrível em que tivemos a nossa liberdade cerceada à força por militares. Agora é diferente. O que acontece no país tem o aval de 57 milhões de brasileiros que alçaram este homem [Jair Bolsonaro] ao poder por meio do voto, um dos principais pilares do Estado Democrático de Direito. Precisamos refletir, portanto, por que motivos o elegeram. Não me parece que essas pessoas estivessem satisfeitas com a situação política no Brasil anteriormente. Não vou citar nomes e nem partidos, porque tal processo de desconstrução não é originário de um governo apenas, mas de todos os outros antecessores, desde o início do nosso período de redemocratização. Eram mais críveis do ponto de vista da administração e socorro assistencial, mas não resolveram as nossas questões elementares. O fato é que um país com 33 partidos não tem partido algum, não tem Congresso. Isso só serve para compra, venda e aluguel de legendas”, dispara.
Arlette Pinheiro, nome de batismo de Fernanda Montenegro, tem autoridade para discorrer sobre as glórias e as mazelas do Brasil. Viveu o céu e o inferno em períodos diferentes da vida. Nasceu no subúrbio do Rio de Janeiro, no bairro de Campinho, mas foi em Belo Horizonte que se alfabetizou. Começou no teatro aos oito anos de idade, interpretando um personagem masculino, um militar. Nas memórias que preenchem as páginas de sua autobiografia assinala não ter ficado nervosa. E relata que guardou para sempre a sensação de levitar, envolvida numa luz cor-de-rosa, sentindo-se fora do corpo físico. “Mas não suspeitei de que, um dia, aquele seria o meu ofício. A minha vida”, conta a atriz. Até alcançar o estrelato e converter-se em unanimidade nacional, Fernanda percorreu um longo caminho. Foi secretária e professora de inglês. E só abraçaria o teatro como profissão após ser aprovada em um teste para ser locutora e atriz do programa Radioteatro da mocidade da extinta Rádio MEC (do também extinto Ministério da Educação e Cultura).
Foi lá que adotara o nome artístico. O “Fernanda”, segundo ela, tinha um ar de romance do século XIX. Já o “Montenegro” foi homenagem que prestou a um médico da zona Norte do Rio que atendia aos pobres gratuitamente. Até na escolha do nome com o qual se consagraria denota generosidade, simplicidade e politização. Reverenciou um profissional da saúde que, por compaixão, se dispunha a servir aos menos favorecidos sem cobrar pelo trabalho. Fernanda sempre esteve de braços dados com a ciência. Jamais a negou. Nestes tempos de pandemia, seguiu rigorosamente todas as orientações dos médicos que lhe acompanham. Tomou as três doses de vacina, usa máscara incondicionalmente e mantém o distanciamento social. A entrevista para o EL PAÍS, único veículo estrangeiro com o qual aceitou conversar após ser eleita imortal da ABL, foi concedida por meio virtual. As fotografias foram feitas em exatos oito minutos. Tem sido assim com todos. Por precaução.
“Sou uma mulher de 92 anos. Tenho a imunidade baixa. Não sabemos o que nos acontecerá e nem por quanto tempo ainda enfrentaremos esse vírus”, sintetiza a atriz.
Planos para o retorno
A inquietude de Fernanda Montenegro tem nome: trabalho. É uma mulher vocacionada a atuar, à troca com o outro, à busca por experimentações. No palco, a atriz destacou-se com outros grandes nomes do teatro brasileiro ao integrar e até fundar companhias que traduzem a própria história das artes cênicas no país. Entre esses, está Fernando Torres, com quem foi casada por seis décadas. Fernanda sempre arrebatou público e crítica por suas interpretações impecáveis. Estreou em “O mambembe”, do jornalista e teatrólogo brasileiro Artur de Azevedo. Mas, ao longo da carreira, encarnou personagens de Jean Anouilh, Georges Feydeau, Pirandello, Bernard Shaw, Harold Pinter, Beckett, Friedrich Dürrenmatt, Fassbinder, Racine, Tchekhov. O seu repertório é vasto e plural.
No cinema, deixou o mundo boquiaberto, 22 anos atrás, pela irrepreensível interpretação de Dora, a professora aposentada que escrevia cartas para trabalhadores na Central do Brasil, a principal estação ferroviária do Rio de Janeiro que intitulou o filme homônimo de Walter Salles. A atuação levou Fernanda a ganhar o Urso de Prata no Festival de Berlim e a ser indicada ao Oscar de Melhor Atriz em 1999 e ao Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme Dramático. É a única atriz do Brasil com indicação ao Oscar.
Ano passado, a atriz norte-americana Gleen Close, em entrevista à ABC News, falou de Fernanda Montenegro, argumentando que ela merecia ter ganhado o Oscar: “Eu lembro aquele ano em que Gwyneth Paltrow ganhou daquela atriz incrível de Central do Brasil. Eu pensei ‘o quê’? Isso não faz sentido”, declarou Gleen. A televisão, espaço que Fernanda também domina com maestria, tendo participações em um sem número de novelas e especiais, proporcionou-lhe vencer a disputa pelo Emmy Internacional de Melhor Atriz, em 2015, com a série Doce de mãe. Apesar dos incontáveis prêmios (são mais de 40), Fernanda é categórica quanto a premiações:
“Nunca trabalhei pensando em prêmios. Eu sempre me dediquei para dar conta do meu ofício. Segui o exemplo do meu pai, que foi um modelador mecânico, iniciando-se na profissão durante o período em que viveu num orfanato. O importante é termos amor inarredável pelo que fazemos. Se vier, ótimo. Mereço. Mas, às vezes, mereço e não vem. Não vou parar a minha vida pensando em algo que merecia, mas não ganhei”, ressalta.
Fernanda não vê a hora de voltar aos palcos. Quer retomar o espetáculo Nelson Rodrigues por ele mesmo e adianta que também deverá reviver Simone de Beauvoir em Viver sem tempos mortos, um recorte de textos da intelectual francesa cuidadosamente selecionados. Sem patrocínios, Fernanda aterrissou com os dois monólogos em espaços das periferias de Estados e municípios de Norte a Sul do Brasil. Deseja reviver a experiência que tem como objetivo a sensibilização de plateias compostas por pessoas historicamente subalternizadas. Em alguns desses lugares, desenvolveu oficinas para jovens, um trabalho intenso de imersão teatral com duração de oito horas diárias. Trata-se de uma atividade árdua, artesanal e apaixonada. Talvez aí esteja a explicação de a atriz ter recusado ser ministra da Cultura, há 37 anos. Em março de 1985, Fernanda Montenegro recebeu do ex-secretário da Cultura de Minas Gerais e futuro governador do Distrito Federal José Aparecido de Oliveira um convite para assumir o cargo principal no então recém-criado Ministério da Cultura. Ele fora um interlocutor do presidente José Sarney. Em carta, a atriz esclareceu os motivos da recusa: “Não é fácil dizer ‘não’. Não vejo que seja mais fácil decidir pelo Teatro. Ou mais seguro. O Teatro nunca foi fácil ou seguro. Mas é o meu lugar”.
Tais quais as críticas recebidas quando foi convidada para ser titular de uma pasta ministerial, Fernanda Montenegro não tem sido poupada pelos cartesianos da intelectualidade que, contrariados, não avalizam a eleição de uma atriz popular (a primeira no país) para ocupar um dos assentos da tradicional instituição dedicada a literatos. Quando enfrentou os petardos décadas atrás, disse que “para aqueles que veem, preconceituosamente, a indicação de um artista para um tão alto cargo, respondo, sem exagero, que esse Brasil novo nasceu num palco armado na praça”. Fernanda não mudou. Mas a ABL, sim, ao vir construindo um projeto de aproximação da casa com a população por meio de imortais que representam a cultura das massas.
“Há um teatro por lá, no qual já me apresentei. Eu penso em fazer algo com aquele espaço. Mas estou aguardando as orientações da Academia”, diz Fernanda, esbanjando invejável vitalidade sem, no entanto, fugir às questões inerentes à existência.
Em uma incomum declaração pública acerca da finitude da vida, Fernanda surpreende ao refletir holisticamente sobre a transitoriedade das matérias, do corpo físico e da alma. Indagada se tem medo da partida (morte), ela finaliza emocionada: “Sentirei saudade. Gostaria de levar comigo a minha memória. Eu tive um desmaio (em 2019) durante uma gravação no Sul do país. Eu demorei para acordar novamente. Mas, quando voltei, senti uma paz absoluta que contrastava com todo aquele alvoroço ao meu redor. Neste retorno, havia um hiato. Eu não lembrava do passado e nem do presente. É como se tivesse acontecido um desligamento. Será que a morte é isso? Não sei. E diante deste mistério ficamos especulando para onde iremos. Se eu for para algum lugar, eu queria muito levar a minha memória. Gostaria de fazer-lhe um pedido: que me enviasse uma cópia desta entrevista. Queria tê-la. Porque tudo já é meio uma despedida para mim. Uma hora acaba. Não tem jeito”.
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