“Temos uma nação onde cada setor, à espera de dias melhores, acorda e canta. O Brasil não vai se entregar”
Atriz brasileira, que está prestes a completar 89 anos, lança livro fotobiográfico sobre seus mais de 70 anos de carreira. Ao EL PAÍS, diz que o Brasil está "nas catacumbas", mas "não vai se entregar"
Arlette Pinheiro Esteves da Silva tornou-se Fernanda Montenegro (Rio de Janeiro, 1929) quando ainda trabalhava na Rádio Ministério da Educação e Cultura, onde começara aos 15 anos após passar em um teste. “Fiquei lá durante 10 anos, mesmo já trabalhando em teatro. A partir do quinto ano, comecei a ter um programa literário para o qual eu adaptava contos, novelas e participava como rádio atriz. Inventei esse nome. Achei que era interessante para um programa literário”, conta ela ao EL PAÍS. “Soava como aqueles nomes franceses a la século XIX ligados a literatura de Balzac e Flaubert. Foi por curtição, mas esse nome acabou pegando. O que vou fazer?”
Era o início de uma longa e brilhante trajetória no teatro, no cinema e na televisão compartilhada na maior parte do tempo com seu parceiro, o ator, diretor e produtor Fernando Torres, com quem foi casada até a morte dele, em setembro de 2008. Prestes a completar 89 anos, Fernanda mantém uma rotina de trabalho intenso. Mais recentemente, abriu a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) de julho deste ano com uma leitura de textos de Hilda Hilst, a homenageada do evento, e lançou pela editora SESC um livro, Itinerário Fotobiográfico, recheado de fotos, textos pessoais e memórias desses quase 75 anos de carreira. “Ele foi pensado há uns oito anos pelo professor Danilo Miranda [diretor do SESC São Paulo], que é um homem voltado para a cultura. Fui abrindo as gavetas e começou a vir o material”, conta.
Pergunta. Quando a senhora se deparou com todo esse material, teve uma outra dimensão de sua carreira?
Resposta. Não, a gente vai vivendo e vai trabalhando... São praticamente 75 anos. O que na verdade também está no livro, que tem 500 páginas, é o que sobrou do que não foi esquecido, do que não foi usado e desaparecido das gavetas. Fernando e eu tivemos uma companhia durante 30 ou 40 anos, então nessa dinâmica de divulgação do que se fazia, muito material não se guardou. De uma certa maneira, o que está no livro, que eu acho de boa qualidade, é o que sobrou dessa dinâmica de se propor diante da sociedade quando você tem um trabalho cultural e teatral. No Brasil, a cada dia você tem que matar um leão, ainda mais dentro da cultura. Então, se você tem algo a dizer no campo cultural, você tem que se propor. Não há acúmulo, compreende? No nosso país, a cultura é batalhada.
P. Muita gente jovem que trabalha com teatro fala da dificuldade de se pagar as contas. Também era assim quando a senhora começou?
R. Sempre foi difícil viver de cultura no Brasil, não só de teatro. Mas o teatro também, porque ele requer o outro... Um escritor pode se fechar numa sala e escrever um livro, que poderá ser sua glória ou não. Um pintor pode pintar um quadro e um dia, inclusive depois de sua morte, virar um gênio. O teatro requer o outro, requer o comunal. Para existir, ele precisa de um investimento, mesmo que mínimo. Como estamos numa crise, o teatro... Ele não vai acabar, mas está nas catacumbas. Está sendo feito conforme a situação permitir. No Brasil, penso que está se encerrando, depois de mais de 200 anos, uma dinâmica, uma estética teatral da potência da dramaturgia, do grande autor. Dada as circunstâncias econômicas e também um certo esgotamento de uma estética teatral no mundo, estamos todos em tempo de espera. Não tenho conhecimento absoluto, sou apenas uma observadora do nosso ponto de vista. Mas a cultura vive uma crise geral, não é só o teatro.
P. Por quê?
R. Porque é tida mais ou menos assim como um licor, um conhaque depois de um grande jantar. Ela é dispensável. E ainda há um movimento que diz que a cultura tira o prato de comida do pobre, porque é fundamental primeiro alimentar e depois virão os outros apoios diante da vida, como a cultura. Eu, na minha viagem, penso que deveria haver só um ministério, o Ministério da Cultura. E depois secretarias. Secretarias de Educação, Economia... É uma ideia maluca, mas na medida em que há desprestígio total em torno da cultura, o meu protesto vai para o campo da utopia. Não há educação que se fixe sem que esteja acoplada à cultura. Uma educação seca, sem o estímulo de uma visão carnificada da cultura, não se fixa.
A crise cultural é muito mais ligada ao artesanato. Quando eu digo artesanato, eu digo o seguinte: nem todo o dia você faz uma grande obra de arte, mas você toca o seu violino porque você não pode deixar de tocar o seu violino. Uma orquestra é feita de artistas, mas antes de serem artistas são artesãos. É como o palhaço no circo, é como um pintor. Há um fazer que não passa pela indústria. É isso que está sendo desprestigiado. Isso não quer dizer que lá nos recantos mais abandonados do Brasil a música daquela região não se faça, a dança não se faça, os movimentos de alguma visão cênica não se façam. A vocação [de um artista] é inarredável. É uma condenação, para o bem e para o mal. Essa vocação te leva a um ofício, então você não é só um trabalhador. É um oficiante, seja marceneiro, corneteiro, pedreiro, médico, advogado, jornalista... Entendeu? De alguma maneira, mesmo nas catacumbas, o ofício vai sendo realizado. Porque se você não estiver ali, fazendo aquilo, vai ser infeliz. Pode até comer melhor, pode até tomar seu conhaque, mas não vai ser feliz.
P. A senhora participou de greves durante os anos 60 contra a censura. Ainda existe hoje? E se existe, qual é a diferença entre antes e agora?
R. A censura que existe hoje é uma censura aparentemente sem face, porque é a censura do desprestígio cultural. É mais difícil de caminhar e até de protestar. Antes sabíamos contra quem protestar e por que censuravam. Hoje acho que temos um Congresso Nacional primário, sem dimensão cultural, e às vezes até mesmo educacional. Não há censura dentro da visão tradicional, que se define a partir de proibições catalogadas em um regime ditatorial. Quando eu falo em desatenção em relação à cultura, eu falo que isso faz parte de uma visão de Brasília em torno da cultura.
P. No mundo inteiro existem movimentos reivindicatórios que demandam mais espaço para, por exemplo, artistas negros e transexuais. No Brasil isso resultou, recentemente, na desistência de Fabiana Cozza de representar Dona Ivone Lara num musical sobre sua vida. Considera esses movimentos legítimos ou vê também alguma tentativa de censura por parte deles?
R. São movimentos legítimos que estão sendo violentamente detonados agora, mas que dentro de 10 ou 15 anos estarão absolutamente encaixados, aceitos. As coisas, a cada período, se acrescentam em suas propostas de reivindicação, de afirmação humana. Pela idade que eu tenho, eu sei que daqui a 15 anos isso não será mais discutido. Será uma representatividade respeitada, aceita e sequer pensada em ser triturada.
P. Por que acha que vêm sendo triturados?
R. Meu filho, isso faz parte das batalhas, das lutas de reivindicações, entendeu? Eu não tenho mais 15 anos, então eu sei que é assim mesmo, é batalhado mesmo, é sofrido mesmo. O momento do protesto é por uma questão de reconhecimento de uma raça ou carência social. Mas eu me lembro da grita pela liberdade de expressão nos anos 60 e o que foi a mulher se propor como criatura. A cada 10 anos há zonas que precisam ser esclarecidas e conquistadas, e geralmente isso vem com contundência. Mas aí chega-se a um acordo, a um ganho. Dentro de um tempo, haverá outra zona que precisa ser esclarecida, reivindicada e conquistada.
P. Qual fase da sua carreira a senhora mais se sente orgulhosa?
R. Dela toda. Sobrevivi. Eu tive um companheiro de vida que me ajudou a existir, e eu a ele. Houve um par. Os pares de qualquer sexo se ajudam, são amparos mútuos. Conheci Fernando Torres no teatro, que é um campo maravilhoso de convívio, de paciência, de generosidade, de contundência, porque isso não é conquistado com doses de ajuda química. É um lugar onde se tem que suportar. E o palco é o lugar mais livre que o homem criou em sua história. Não existe nada mais liberto nem mais libertário do que o palco.
P. Talvez por isso incomode tantas pessoas...
R. Eu acredito que sim, mas isso vale para a cultura em geral. A cultura é instigadora, não é conformada. Essa culturinha conformada... No Brasil estamos caminhando para uma visão de grupos evangélicos que têm um outro conceito sobre o que vem a ser a arte ou a liberdade de se dizer e de ser. Há uma contestação em torno disso. Então temos mais um problema, que é como a gente vai existir com esses contrários. E a gente vai ter que ter força o suficiente para contestar essa contestação (risos). É isso que faz a dinâmica da vida, não é? Quem vive de dramaturgia sabe o que é isso.
P. Tornou-se um clichê dizer que a senhora é a melhor atriz do Brasil. Concorda com esse título? Quem é, na sua visão, a melhor atriz do país?
R. No momento, embora com 97 anos, Bibi Ferreira é a grande mulher, a grande atriz, a grande produtora, a grande artistas dos palcos desse país. Não sou eu. É nela que eu me espelhei quando eu tinha 15 ou 20 anos. Além dela, Dulcina de Moraes. Mas Bibi trabalhou até 95 anos e é também uma cantora extraordinária, uma mulher de palco absoluta. Ela é minha raiz.
P. Alguma atriz ou ator da nova geração te chama a atenção?
R. É muito pobre, para não dizer porco, destacar um nome. Há uma geração de atrizes e atores que estão bem, são ótimos, estão se preparando a própria custa numa hora complicada de sobrevivência de palco, indo fazer seu teatro como pode, sobrevivendo economicamente do que puder fazer de cinema, de televisão... Então não vou destacar ninguém. O teatro do Brasil é mais rico do que ficar destacando um ou outro nome.
P. Seu livro possui imagens muito pessoais, de família, entre as quais destaca-se uma de Fernando Torres no dia de sua morte. Qual é a fronteira entre o que é público e o que é privado?
R. É um itinerário de uma vida. Eu sou resultado dos meus antepassados. São italianos e portugueses. Me criei envolvida por esse mundo que lutava para se adaptar a este país e, como toda leva de primeiros habitantes de um país depois de uma imigração, meus pais eram profundamente brasileiros. Eu sou profundamente brasileira. Assim como eu tive a minha família de sangue, eu tive a minha família de teatro. Amigos, colegas... A maioria já se foi. Eu não posso narrar minha vida sem meu companheiro, esse homem com quem vivi 60 anos. E meus filhos, que também vieram para a mesma área que nós. Tudo se mistura. Não existe divisão [entre a vida profissional e pessoal]. O verdadeiro bicho de teatro não tem divisão. Se tiver que amamentar nos bastidores, amamenta. Se estiver sem ninguém para dar conta, leva para o camarim e a camareira ajuda naquele momento a cuidar da criança. Isso no meu tempo, não sei como é hoje. Porque nós tínhamos uma vida intensa, dia e noite, de palco, de bastidor... E de profissão. Ou de vocação.
P. A senhora ainda trabalha muito. O que te estimula a manter esse mesmo vigor de antes?
R. Eu não sei como ainda trabalho. A minha geração que ainda está viva trabalha muito. Laura Cardoso, Eva Vilma, Lima Duarte, Francisco Cuoco... Nathalia Timberg trabalha sem parar em teatro. Estão todos de 81 para 93 anos. Porque o teatro te dá vida. O corpo pode estar ruim, mas na hora que você entra em cena... Saiu de cena, vem todas as dores das juntas. Mas em cena, não tem nada.
P. No seu caso, o que veio com a idade? Em que momento percebeu que estava envelhecendo?
R. As minhas juntas já foram melhores. Os olhos também já enxergaram melhor. Os sapatos já puderam ter salto oito ou nove, mas já não me arrisco mais. A coluna ainda está no lugar, só Deus sabe porquê. Eu fui sem perceber até a morte do Fernando, que faz 10 anos agora em setembro. A partir daí vi que a finitude estava chegando, entendeu? O humor mudou. A paciência aumentou. A resignação também aumentou, mas não muita. Principalmente em relação a existência mesma, mas não tanta em relação ao mundo principalmente da política. Infelizmente não existe a imortalidade. Quando eu vejo Bibi Ferreira parando, com 97 anos, é a minha era que está indo embora. Comecei a perceber isso com a morte de Paulo Autran, que se foi há uns 12 anos. Pouco antes ele estava fazendo uma peça de Molière com 1.000 pessoas na plateia. E ele parou. Eu mandei uma carta pare ele, e isso está no livro, em que eu dizia, apavorada: “Paulo, se você para, acabou a nossa era”. E é verdade. Aos poucos, meus amigos inseparáveis foram embora. Foi o início do fim. Mas isso não tem morbidez, não tem angústias... Bate uma certa tristeza às vezes, mas a atividade te leva a ter uma terapia ocupacional boa. É vida pura, porque você está sempre lidando com seres humanos.
P. O Brasil ainda vale a pena? O que diria para alguém que desistiu do país?
R. O Brasil existe. Independentemente dessa Brasília maluca que está aí e desses governos que se sucedem. Temos um país do tamanho de um continente onde cada setor, na esperança de dias melhores, acorda e canta. E eu só quero dizer que este país não vai se entregar. Em todos os sentidos. Na sua sobrevivência, não vai desistir. Nós estamos todos nas catacumbas. Mas vai sair o brasileiro contemporâneo. E se é contemporâneo, está ligado ao seu tempo, então é um ganho (risos).
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