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1800: a revolução intelectual dos pensadores alemães

A Alemanha iniciou no começo do século XIX uma revolução tão importante quanto a francesa, como conta o jovem filósofo Peter Neumann em um novo ensaio

Goethe visto por Andy Warhol.
Goethe visto por Andy Warhol.© Fine Art Images (© © Fine Art Images)

O jovem filósofo alemão Peter Neumann (Neubrandenburg, 1987) se doutorou em Filosofia com uma tese sobre a influência de Kant em Schelling, e atualmente leciona na Universidade de Oldenburg. Depois de três livros de poemas e da tese acadêmica, Jena 1800: Die Republik der Freien Geister (“Jena 1800: a república dos espíritos livres”, ainda sem edição em português) é seu primeiro ensaio, recém-lançado na Espanha com o título de La República de los Espíritus Libres − Jena 1800. Na Alemanha, fez muito sucesso. Com um estilo ágil, Neumann consegue contar de forma agradável a história —e as histórias— de personagens-chave no pensamento, da literatura, da arte e das ciências germânicas do início do século XIX. Da confluência de suas ardentes personalidades, da força de suas ideias, nasceu o primeiro romantismo, consolidou-se o idealismo alemão na filosofia e brotou um pensamento de liberdade já inteiramente moderno.

Neumann começa descrevendo o impacto da Revolução Francesa na Alemanha. Primeiro causou alegria, depois veio a decepção diante da brutalidade dos revolucionários; a Europa inteira se blindou contra o que vinha da França. Napoleão se proclamou imperador e se lançou à conquista de outras nações. Jena, a pequena cidade universitária da Turíngia, também caiu diante de sua força em 1806. No mesmo dia em que Napoleão entrou na cidade, o jovem filósofo Hegel terminou sua obra-prima: Fenomenologia do Espírito. Mas este ensaio não é sobre a queda de Jena, e sim do espírito que lá reinou por volta do ano de 1800, quando a Alemanha iniciou uma revolução tão importante quanto a francesa, uma revolução espiritual, intelectual. Na Alemanha, ninguém foi decapitado; ao contrário, várias cabeças se destacaram ou floresceram em torno daquele ano magnífico.

Os heróis do livro são um grupo de intelectuais —jovens e nem tanto— que eram filósofos, poetas tradutores e filólogos: Fichte e Schelling; Novalis e Tieck; os irmãos Schlegel —Wilhelm e Friedrich—; assim como os dois escritores mais célebres daquela época: Goethe e Schiller. E como é raro que haja grandes homens sem grandes mulheres que os apoiem, ao seu lado se destacaram duas mulheres excepcionais: Caroline Schlegel (depois Schelling) e Dorothea Veit (depois Schlegel). Elas eram a alma da “comunidade de espíritos livres” que se formou na casa onde moravam os irmãos Schlegel em Jena (Lautragasse, 5), perto do edifício da universidade. Ali esses talentos se reuniam, compartilhavam ideias e consagravam seus dias à arte e ao pensamento; e também ao amor. O jovem Schelling, que adorava Caroline —casada com Wilhelm, mas sem muito afeto—, delineou um sistema filosófico segundo o qual a natureza é espírito e isso deve nos sensibilizar ao lidar com ela.

A ideia caiu no agrado de Goethe, que nunca suportou a filosofia especulativa, mas acredita na natureza como macrocosmo, à maneira de Spinoza. E foi também Goethe, que gostava de provocar, que influiu para que o filósofo Fichte lecionasse em Jena. Em suas aulas, Fichte proclamava a liberdade absoluta do Eu. A liberdade é o máximo, e é dever do ser humano aspirar a conquistá-la: não há limites, tudo que for feito em favor da liberdade humana é lícito, abaixo os tiranos do espírito! E os tiranos da Terra! Todos ficam empolgados com essas ideias novas. Assim como com os dramas recentes de Schiller —a trilogia Wallenstein—, lançados com esplendor na cidade vizinha de Weimar, a “corte das musas”, muito bem relacionada com Jena.

Friedrich Schlegel está escrevendo a segunda parte de um romance inovador: Lucinde. A primeira parte causou furor pela liberdade que concedeu ao amor, desvinculando-o dos costumes burgueses; e agora ele quebra a cabeça para manter o nível. Seu lema é: “Embora este mundo não seja o melhor nem o mais útil, sei que é o mais belo”; Dorothea, divorciada de seu rico marido, a quem não amava, apaixonada agora por Friedrich, tem que animá-lo, lembrando que onde reina o amor, todo o resto é mais fácil de suportar. Ela escreve seu primeiro romance e colabora como todos na redação da revista literária Athenaeum, dirigida pelos dois Schlegel. Quanto a Caroline, além de admirar a ousadia filosófica de seu apaixonado Schelling —com quem acabará se casando—, colabora com Wilhelm nas traduções que ele faz de Shakespeare para o alemão. Ninguém o traduz tão bem quanto ele: hoje é um clássico. Seu amigo Tieck traduziu Dom Quixote para o alemão, outra maravilha.

Entre aqueles apaixonados pela sabedoria reinavam a luz e o calor espirituais. Sua religião era a da arte e da poesia, sem detestarem por isso a religião tradicional, à qual deram toques estéticos. À comunidade de amigos pertencia o teólogo Schleiermacher, que proclamava que a religião é um “sentimento de plenitude universal”. Nisto era seguido por Novalis, jovem divino e talentoso, cujos Hinos à Noite mistificavam a natureza e conclamavam ao encantamento do mundo desencantado. Ele morreria com 29 anos.

Quando Napoleão entrou em Jena, todos que faziam parte daquela comunidade de revolucionários do espírito já viviam destinos diversos, mas suas ideias forjadas em comum criariam raízes na Europa. Este livro, de leitura agradável, convida a continuar se aprofundando na vida e na obra daqueles personagens singulares, alguns ainda pouco conhecidos.

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