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A morte inesperada de Jaider Esbell, o artista indígena que segurava o céu

Artista visual da etnia Macuxi, um dos pilares da Bienal de Arte de São Paulo, foi encontrado morto na terça-feira, aos 41 anos. Ele havia conversado com o EL PAÍS em setembro sobre a arte como instrumento político de diálogo

Jaider Esbell em frente a série Amooko Pantoni - Estórias do vovô Makunaimî
Jaider Esbell em frente a série Amooko Pantoni - Estórias do vovô MakunaimîLela Beltrão

Em frente a uma grande tela de fundo branco onde pequenos quadrados retratam os rituais de bênçãos feitos pelas anciãs de seu povo, o artista indígena Jaider Esbell fitava com olhar fixo e postura firme os visitantes que apreciavam suas obras. A Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em sua 34ª edição, inovou ao abrir espaço para a arte indígena contemporânea, e Esbell, da etnia Macuxi, era o seu principal expoente brasileiro. O roraimense foi encontrado morto em São Paulo na terça-feira, aos 41 anos, o que chocou o mundo das artes. Ele vivia um momento ímpar. A causa da morte ainda não foi divulgada.

Quando os curadores do evento convidaram-no a expor, Esbell negou-se a ocupar sozinho aquele espaço, como um totem de uma pretensa diversidade. Ele passou, então, a articular-se com os responsáveis para convidar a maior quantidade de artistas representantes de povos originários na história do evento, sendo cinco brasileiros (além dele, Daiara Tukano, Sueli Maxakali, Uýra e Gustavo Caboco) e quatro estrangeiros. Graças a ele, esta Bienal entrará para a história como a “Bienal dos indígenas”.

“A gente ainda precisa corporificar, sim, uma arte étnica, uma arte de raiz. Muitos me perguntam: ‘Mas por que você tem que dizer que sua arte é indígena? Sua arte poderia ser qualquer arte’. E eu respondo: Poderia, mas não é, porque nós temos uma urgência histórica, colonial. As coisas que acontecem lá na floresta não nos permitem fingir que está tudo bem e que agora qualquer um pode ser artista”, disse Esbell ao EL PAÍS em setembro, durante a abertura da Bienal.

Ao tomar conhecimento do falecimento do artista, a Fundação Bienal de São Paulo agradeceu, em nota, o fato de Esbell ter se tornado, “com clareza e generosidade, um dos principais porta-vozes dos artistas de povos originários, estabelecendo pontes e trocando saberes com o circuito institucional de arte contemporânea”. Além de ser considerado um dos pilares da atual edição do evento, o artista assinou a curadoria da mostra Moquém_Surarî, em cartaz até 28 de novembro no MAM, vizinho à Bienal no Parque do Ibirapuera, que conta com obras de 34 indígenas. Nomes como Ailton Krenak, David Kopenawa, Sueli Maxakali e outros assinam os trabalhos.

'De onde surgem os sonhos', obra de Jaider Esbell.
'De onde surgem os sonhos', obra de Jaider Esbell.

“Somos artistas indígenas contemporâneos que, apesar de trabalharmos também na tela de um smartphone, falamos de uma arte espiritual, uma coisa maior, com uma consciência de raiz, de base. Nos apropriamos de todas as mídias, de todas as linguagens, inclusive das artes, para dizer que estão nos matando há 521 anos”, explicava Esbell. Essa é uma denúncia presente, direta ou indiretamente, em todas as suas obras. Um dos maiores exemplos é Carta ao velho mundo, exposta na Bienal, em que ele sobrepôs sua arte nas 400 páginas de um livro de luxo sobre a história da arte clássica, construindo um farto registro dos séculos de colonização devastadora nas Américas.

Esbell considerava o pavilhão da Bienal um Parlamento tal qual o de Brasília. “Aqui também há autoridades que julgam e cuja canetada poderosa pode refletir na comunidade que está lutando para ter um território próprio digno. Aqui também estamos tratando de marcos temporais, de democracias. Por isso, aqui, minha fala é de um advogado, de um político”, disse o artista que, desde os 18 anos, participou da articulação de povos indígenas e outros movimentos sociais. “A única novidade hoje é o fato de conseguirmos chegar a lugares mais amplos, fazer pressão nas ruas de Brasília, por exemplo. Nosso movimento artístico está na China, conectado a artistas como Ai Weiwei, estamos em Nova York, na Fundação Cartier, em Paris, no Japão... Estamos amarrando pontas soltas numa armadilha poderosíssima chamada arte indígena contemporânea, que está todo mundo querendo saber o que é”, afirmou.

Ele ria do estranhamento que esse movimento artístico ainda causa na academia e no mercado das artes. “Uns dizem que não existe, a Europa está estressada, porque não é belas artes, está todo mundo correndo da sala para a cozinha. E eu digo: calma, gente, não corram, não vamos matar ninguém. Trata-se de uma proposta de diálogo. É uma reafirmação de toda tentativa de comunicação que nós e nossos antepassados fizeram há séculos e vocês nunca quiseram entender. Estamos lutando pela floresta, por nossos filhos e netos e, inclusive, pelos netos do presidente, por exemplo. Porque onde tem terras indígenas demarcadas, existem florestas oxigenando o mundo”, explicava.

Obra 'Carta ao velho mundo', de Jaider Esbell, exposta na Bienal.
Obra 'Carta ao velho mundo', de Jaider Esbell, exposta na Bienal. Lela Beltrão

Na conversa com o EL PAÍS, o artista citou mais de uma vez mestres como o xamã Yanomami Davi Kopenawa, a quem considerava como um “cientista com clareza filosófica” ao falar da devastação que já vem sendo provocada pela emergência climática. “Os povos indígenas são realmente os últimos que estão conseguindo segurar o céu e, se cansarmos, ele desaba. O fim do mundo nada mais é do que essa humanidade, esse antropoceno que não deu certo e que será varrido do mapa, mas a vida vai continuar, a floresta vai se regenerar, os animais vão voltar, os povos originários estão sempre aqui. Mas a branquitude e toda sua colonização será varrida”, sentenciava.

Em uma visão pragmática, Esbell afirmava, sem titubear, que os povos indígenas travam uma guerra pelos seus direitos e que a humanidade, como um todo, está em guerra contra o planeta. Dizia que cada guerreiro tem que fazer sua função. A sua era denunciar, dialogar, construir pontes através da arte. “Eu trago o meu movimento artístico até aqui [a Bienal], mas, daqui, cada artista neste espaço tem que saber o peso e, especialmente, a leveza do que isso representa. Leveza, alegria, diálogo”, repetia seu mantra. Essa era a natureza de Jaider Esbell, essa é a natureza que reverbera seu povo e que ele imortalizou em sua obra.

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