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Museus se despem no OnlyFans

Pinacotecas de Viena, como Albertina e Leopold Museum, abrem contas na plataforma pornográfica para evitar a censura de quadros com nus (e o controle moral dos algoritmos) nas redes sociais

‘Nu feminino deitado com as pernas abertas’ (1914), de Egon Schiele, conservado no Albertina de Viena.
‘Nu feminino deitado com as pernas abertas’ (1914), de Egon Schiele, conservado no Albertina de Viena.Heritage Images (Heritage Images/Getty Images)

Pio XIII − O que você vê de tão sensual nessa estatueta [Vênus de Willendorf]?

Cardeal Voiello − Prefiro não indagar em minha psique.

The Young Pope’

Uma pequena estatueta de pedra calcária que representa uma mulher de seios, nádegas e vulva volumosos é o objeto de desejo carnal do cardeal Angelo Voiello, o insidioso secretário de Estado do Vaticano na série The Young Pope. Ele não pode tocá-la, nem possuí-la, porque a Vênus de Willendorf está sempre a salvo no escritório do casto Lenny Belardo (papa Pio XIII), que vê nela o objeto prático de sua existência na Terra.

O Vigário de Cristo, o órfão, sem possibilidade de procriar, não busca a Deus porque não acredita nele, só no hedonismo representado por aquela figura do Paleolítico encontrada há cerca de cem anos na margem austríaca do Danúbio. Ninguém sabe ao certo se representa uma bruxa ou uma mãe, tanto faz, porque, apesar do idealismo ilimitado de suas formas, o fato é que para a inteligência artificial (IA) ― que nas redes sociais não impõe cotas de tolerância a imagens de matanças, desastres bélicos e discursos de mandatários criminosos ― ela é, eroticamente, muito exagerada e prejudicial, adquirindo o estigma de algo incorreto.

Não foi censurado apenas esse inocente pedaço de divindade; os códigos de boas práticas do Facebook, Twitter, TikTok e Instagram, encarregados de transformar as telas de nossos celulares em lojas e jornais personalizados, incluem a não exibição de corpos ― ou partes ― sem roupa por considerá-los pornográficos, de modo que hoje é praticamente impossível ver imagens que incluam nudez ou conteúdo sexual explícito, não importa se são artísticas, de reivindicação do próprio corpo (fará diferença se uma mulher aperta ou não os seios, se amamenta um bebê ou se o mamilo é de um homem ou de uma mulher), todas poderiam ser ofensivas ou ameaçadoras para uma mente inocente. Dito com a simplicidade pícara de Mae West: “Acredito na censura: afinal, fiz uma fortuna por conta dela”.

Vênus de Willendorf.
Vênus de Willendorf.Museo de Historia Natural de Viena

Os algoritmos das redes combatem a corrupção provocada pelo consumo de pornografia. Argumenta-se que se permitissem uma foto de um corpo descoberto por razões artísticas ou de saúde, as contas dedicadas ao comércio sexual encontrariam a forma de divulgar suas propostas ou fotos, disfarçando-se de campanhas de saúde ou artísticas. Curiosamente, ocorre o contrário. E a estatueta de Willendorf, esse imperativo para o prazer do superego de Voiello (cujo original está no Museu de História Natural de Viena), é o anjo da crisma. Sua imagem está sendo censurada pelo pudor instalado na abismal relatividade das redes sociais, mas, paradoxalmente, acabou ajudando a reforçar a situação que se queria evitar. A imaginação sempre proporciona alívios rentáveis às inoportunas mentes hipócritas.

Há poucos dias, surgiu a notícia de que os museus de Viena, através do Conselho de Turismo, decidiram se unir à plataforma de assinatura de conteúdos pornográficos OnlyFans para fugir da censura quase generalizada à nudez nas redes sociais. Alguns deles, como o Albertina e o Leopold Museum, tiveram problemas para publicar imagens como a da excitante Vênus de Willendorf, e outros trabalhos de autores reconhecidos, como Egon Schiele e Koloman Moser, cujas obras já tinham sido objeto de conflito com censores há mais de cem anos. “Com a ascensão das redes sociais, proibições como essas voltaram a aparecer nas manchetes”, assinala o Conselho de Turismo da capital austríaca.

A resposta foi se unir à plataforma de pornografia paga: “Você é suficientemente ousado para dar uma olhada na Viena despida no OnlyFans?”. Como assinante, você poderá ver as “obras provocativas de Modigliani, Richard Gerstl, Moser, Schiele e Rubens que estão em nossos museus”, diz o conselho, com a amabilidade peculiar da serpente no paraíso das tentações. Além disso, todos os “assinantes de mente aberta que se inscreverem receberão um cartão da cidade ou um ingresso para ver esses quadros ao vivo”. Norbert Kettner, diretor do Conselho de Turismo de Viena, afirma o OnlyFans não é uma solução definitiva, mas por enquanto “serve para denunciar a censura, é uma forma de começar a falar do papel que a inteligência artificial tem em nossas vidas e como lidar com a nudez produzida na arte há cem anos”.

Não são só os museus de Viena que estão sofrendo censura online. Os algoritmos das redes sociais rastreiam tanto as páginas das instituições artísticas mais importantes do mundo ― Smithsonian, Boston Fine Arts, Metropolitan ― como as publicações de artistas emergentes, que no melhor dos casos descobrem as imagens de suas próprias obras cobertas por uma tarja preta nas partes consideradas obscenas. Como a ação da inteligência artificial influencia a autocensura? No fim das contas, como no caso do cardeal Voiello, trata-se da liberdade interior de ser ou não ser incomodado pelo superego. A obra de arte não é nada se não inquieta ou incomoda, se não serve para transgredir as moralidades das novas catequeses surgidas do espetáculo e do simulacro.

“As mulheres têm de estar nuas para entrar no Met?”. Famosa obra do grupo de artistas ativistas Guerrilla Girls, que surgiu nos anos oitenta e reivindica um papel maior da mulher no setor artístico.
“As mulheres têm de estar nuas para entrar no Met?”. Famosa obra do grupo de artistas ativistas Guerrilla Girls, que surgiu nos anos oitenta e reivindica um papel maior da mulher no setor artístico.guerrilla girls

Há mais de três décadas, um coletivo de mulheres artistas ocultas sob máscaras de gorila, as Guerrilla Girls (“guerrilha” e “gorila” são pronunciadas da mesma forma em inglês) irrompia no Metropolitan Museum de Nova York com um cartaz em que se via a icônica odalisca de Jean Auguste Dominique Ingres com uma máscara de primata. Com letras grandes e estridentes, o cartaz dizia: “As mulheres têm de estar nuas para entrar no Met? Menos de 5% dos artistas nas seções de Arte Moderna são mulheres, mas 85% dos nus são femininos”.

Mais uma vez, aqui estamos as mulheres, em um círculo, como cervos paralisados pelos faróis na escuridão destes tempos. O fato de que os museus acabem colocando-as nas páginas pornográficas de uma rede social é uma dos piadas mais mal contadas da história.

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