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Exílio por liberdade: a barganha para calar a dissidência artística de Cuba

Hamlet Lavastida e Tania Bruguera, dois dos rostos mais visíveis da oposição ao presidente Díaz-Canel, negociaram sua saída do país em troca de serem postos em liberdade. Centenas de detentos continuam presos à espera de julgamento depois dos protestos de 11 de julho

A artista Tania Bruguera, em Madri.
A artista Tania Bruguera, em Madri.Carlos Spottorno

O artista cubano Hamlet Lavastida passou 89 dias numa prisão de Havana pela acusação —sem julgamento nem provas— de incitação à delinquência. Após semanas de tortura e de se tornar um símbolo internacional da oposição ao regime cubano, ele e a escritora Katherine Bisquet, sua mulher, receberam uma oferta das autoridades: a porta da cadeia se abriria se eles aceitassem ir embora da ilha —e fica tudo por isso mesmo. Uma proposta similar chegou várias vezes à casa da também artista Tania Bruguera, sob prisão domiciliar, com as mesmas acusações. Também Carolina Barrero ouviu essa sugestão. A lista de artistas postos em liberdade pelo Governo de Miguel Díaz-Canel em troca de partirem para exílio é longa, e isso parece ter se tornado uma estratégia do regime para silenciar os dissidentes, especialmente os artistas. O aparato de segurança do Estado os persegue com maior intensidade desde o começo do ano, quando esse coletivo se tornou o rosto visível de uma oposição que saiu às ruas nos históricos protestos antigovernamentais de 11 julho.

Lavastida e Bisquet aceitaram a proposta e foram embora de Cuba em setembro. Atualmente residem em Varsóvia. “Minha saída era a moeda de troca para a libertação dele”, escreveu Bisquet em suas redes sociais. “A essa mesma pressão e tentativas de chantagem foram submetidas várias pessoas próximas a Hamlet, tanto familiares como amigos”. Pouco tempo depois, já na Europa, o artista confirmou esta versão em uma entrevista ao site cubano independente El Estornudo. “Não pressionaram apenas Katherine, mas também Carolina Barrero: que eu pudesse falar com qualquer pessoa, e convencê-las disso”, relatou Lavastida.

O artista Hamlet Lavastida protesta contra a Bienal de Arte de Havana. Imagem da sua conta no Facebook.
O artista Hamlet Lavastida protesta contra a Bienal de Arte de Havana. Imagem da sua conta no Facebook.

Quando aceitaram a oferta de sair do país, o regime lhes estendeu um tapete vermelho para que fizessem os devidos trâmites. Obtido o visto, “eles te apontaram o caminho do exílio”, relatou Lavastida ao El Estornudo. “Cinco carros levam você e a sua mulher até o aeroporto, com uma moto atrás, e mais de 20 agentes; você não entra pela porta normal, mas por trás, por onde entram os presidentes e os ministros. Suas malas pesam quatro vezes o permitido, e eles deixam isso passar.” Além disso, foi autorizado a levar várias de suas obras, as mesmas que antes tinham sido vetadas por fazerem críticas a Fidel Castro. “Disso se trata: você se sente VIP”, refletiu o autor.

Em uma situação parecida se encontrou a artista Tania Bruguera, uma das vozes mais críticas na última década entre os artistas cubanos e que também decidiu recentemente sair do país depois de passar quase nove meses em prisão domiciliar (período em que o Governo lhe cortava sua conexão à internet para mantê-la incomunicável). No fim de agosto, deixou a ilha e agora trabalha na Universidade Harvard, em Massachusetts —uma oferta trabalhista que tinha recebido meses antes, mas que hesitou em aceitar até que o regime começou a pressioná-la para emigrar.

“O Governo de Cuba, através de agentes da Segurança do Estado, me disseram quatro vezes que eu fosse embora, pois se não eu iria perder minha carreira”, conta Bruguera ao EL PAÍS. “Na última vez me disseram: ‘Se o problema for dinheiro, não se preocupe, nós facilitamos tudo’”, recorda. Eram as mesmas vantagens oferecidas a Lavastida e Bisquet. Mas ela se negava a ceder tão facilmente. “Cada vez que me diziam isso, eu lhes respondia que não estava interessada em sair, inclusive suspendi várias exposições fora do país”, acrescenta.

O momento da detenção de Luis Manuel Otero Alcántara, em julho passado, em Havana. Imagem extraída de um vídeo do YouTube.
O momento da detenção de Luis Manuel Otero Alcántara, em julho passado, em Havana. Imagem extraída de um vídeo do YouTube.

A historiadora da arte Carolina Barrero, em prisão domiciliar desde o começo de junho (é sua segunda vez, somando ao todo mais de 100 dias), é vítima do que se estabeleceu como um padrão de perseguição do Estado. Está sendo acusada de instigação à delinquência, mas nunca recebeu um documento oficial com essa acusação. Numa chamada de WhatsApp através de um número que não é o seu, ela conta que uma equipe de agentes da polícia e da Segurança do Estado se posta dia e noite na portaria do seu prédio. Ela não pode sair de casa. Alguém precisa lhe levar comida. Só pode, com uma autorização, ir à loja da esquina a comprar água e cigarros, e sempre com o acompanhamento de um agente. É nestes curtos passeios em que sugerem que ela vá embora. Assim como Bruguera, recusa-se. “Em uma ocasião me deram 10 dias para sair da ilha”, recorda, sem perder a força na voz. Para convencê-la, recebeu até a visita da mãe de um amigo: “Ela me disse que seria o melhor para mim, falou-me como uma mãe”. Outra forma de chantagem emocional.

Barrero teve que trocar de número telefônico três vezes. Mudou-se para a casa do seu pai porque a mulher que alugava seu apartamento anterior “estava cansada da presença militar”. Passa os dias lendo, “em uma coisa ou outra, sempre ocupada”, diz em referência ao seu trabalho como ativista, já que não conta com uma ocupação formal que lhe gere renda. Vive das economias que reuniu na Espanha, onde passou oito anos antes de voltar a Cuba em novembro de 2020, quando se envolveu no Movimento San Isidro. E neste ponto da conversa ela recorda que é cidadã espanhola e não recebeu nenhum tipo de assistência por parte da embaixada.

Manifestações de apoio organizadas pelo Governo cubano em reação aos protestos da oposição em 11 de julho.
Manifestações de apoio organizadas pelo Governo cubano em reação aos protestos da oposição em 11 de julho. Ernesto Mastrascusa ((EPA) EFE)

No caso de Bruguera, consciente da reação internacional causada por sua detenção e a de outros artistas, ela tentou negociar: escreveu uma lista aos agentes do Estado com os nomes de 70 indivíduos detidos arbitrariamente, como Lavastida e o artista Luis Manuel Otero Alcántara, além de outras pessoas menos conhecidas que também foram capturadas em 11 de julho. O Governo aceitou libertar Lavastida e alguns outros dessa lista, além de retirar as acusações do Ministério Público contra Bruguera para que ela fosse embora. Era mais um sinal de que, em vez de ser um processo judicial com garantias, o Governo usa de maneira arbitrária e como forma de pressão as acusações por crimes como incitação ao crime ou atentado contra a Segurança do Estado (as duas que pesavam contra Bruguera). “Normalmente, negociações deste tipo são entre Estados. Acho que é a primeira vez que a sociedade civil conseguiu retirar alguns detentos desta maneira”, diz Bruguera dos Estados Unidos.

Abraham Jiménez, jornalista independente em Cuba, diz que as ofertas de exílio para Lavastida e Bruguera são parecidas com as que surgiram na chamada Primavera Negra de 2003. Naquela ocasião, o Governo presidido por Fidel Castro deteve 75 ativistas cubanos, imputando-lhes acusações absurdas, mas em 2010 aceitou, após negociar com a Igreja Católica e a embaixada espanhola, que vários fossem soltos, desde que se comprometesse a emigrar para a Espanha. Na década de 1980 também aconteceu algo similar, coincidindo com queda do Muro do Berlim e do campo socialista. “Quando a panela está em ebulição, o Governo libera um pouco de pressão e lhes pede para irem embora”, resume Jiménez.

Não são proibidos de voltar ao país, mas tampouco têm a garantia de que conseguirão. “A Hamlet não lhe disseram que estivesse banido, mas um dos agentes da Segurança lhe advertiu de que se continuasse com sua ativa vida política [em referência ao seu trabalho artístico crítico à Revolução] estaria esperando por ele pessoalmente no aeroporto para levá-lo de volta à Vila Marista [a prisão onde esteve detido]. Você nunca sabe se está vetado até que chega ao aeroporto”, diz Marco A. Castillo, artista cubano residente no México que liderou os protestos pela libertação de Lavastida na última edição da feira ARCO em Madri. “A ilha não é propriedade do Regime; sair de Cuba não significa partir para o exílio ou só voltar de férias”, concorda Barrero.

Bienal de arte de Havana

“Vamos boicotar a Bienal enquanto não liberarem todos os detentos de 11 de julho”, diz Bruguera. Junto a um grupo de artistas, ela promove um boicote a um dos eventos culturais mais antigos e importantes do país, previsto para o fim de novembro, com a presença esperada de curadores, artistas e marchands de todo o mundo. “Não me meto com os artistas cubanos, que agirão como sua consciência mandar, mas pedimos aos estrangeiros que não participem porque seria legitimar uma ditadura que está prendendo tanta gente”, diz Bruguera. “Todos começamos nesta Bienal”, concorda Castillo. “Não temos nada contra ela, é uma grande oportunidade para os artistas cubanos, mas precisamos fazer este chamado de atenção.”

A ONG cubana Cubalex tenta construir um registro com o histórico jurídico de 1.116 pessoas detidas durante os protestos de julho, dos quais 561 continuam encarcerados, segundo dados que conseguiram reunir. “O Estado não dá informação nem aos familiares dos detidos”, diz Laritza Diversent, uma das ativistas que tentam seguir a pista dos detidos, ao EL PAÍS.

A campanha pela libertação de todos eles já começou nas redes. Os artistas compartilham imagens do rosto deles com o lema “Não à Bienal”, e o próprio Lavastida participou de Varsóvia. A exigência é que libertem as centenas de pessoas detidas, todos esses sem nome e sem acusações formais. Do contrário, o boicote não será suspenso. Falta pouco mais de um mês para que se saiba se esta iniciativa é uma carta poderosa nas mãos dos artistas para forçar o Governo cubano a negociar, ou se este último já se cansou de soltar pressão da panela.

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