O papa de Jude Law é o novo assunto dos cardeais do Vaticano
Influente jornal publica críticas sobre série da HBO e serve como termômetro de sucesso dentro da Igreja
Um padre, um espanhol já com dificuldades para lembrar a quantos anos está no Vaticano, para na banca e pede um exemplar do jornal L’Osservatore Romano. Leva o dedo indicador à boca, vira as páginas do jornal e aponta para o texto do qual estava falando. “É claro que aqui muitos viram isto”, responde sem tirar os olhos da página dupla. Mas a questão é: você gostou?
A primeira temporada de O Jovem Papa (The Young Pope), a série do diretor Paolo Sorrentino sobre Lenny Belardo (o nome de batismo do fictício Pio XIII, interpretado por Jude Law), um pontífice que bebe Cherry Coke Zero, fuma olhando as estrelas em um terraço do Vaticano, cita Daft Punk e Banksy e invoca de maneira provocativa a dura ortodoxia pré-conciliar para recuperar o mistério de uma espiritualidade tantas vezes vilipendiada por chaveiros e imãs de geladeira, apareceu no domingo passado resenhada no jornal da Santa Sé. É a primeira vez que se pode ler um pronunciamento intramuros sobre uma série que, apesar do gosto de Sorrentino por deformar os cenários e o rosto de seus protagonistas, não desagradou no Vaticano. Mais do que isso, alguns, como Giovanni Maria Vian, diretor da publicação há 10 anos e prestigiado especialista em história da Igreja, colocam a série à mesma altura de grandes obras como As Sandálias do Pescador (1968) e O Cardeal (1963), de Otto Preminger.
As duas críticas, assinadas por Juan Manuel de Prada e pela historiadora e diretora do suplemento mensal do jornal do Vaticano, Lucetta Scaraffia, saíram um ano depois da estreia da série da HBO e analisam luzes e sombras do périplo de dez capítulos de Belardo, um cínico cardeal norte-americano que se torna Papa com apenas 47 anos, depois de trair seu mentor. Um pontífice muito jovem para quase tudo. Mas, sobretudo, para que a natureza possa corrigir (com a morte) o que claramente parece ter sido um erro do Conclave.
A relevância do debate é marcada pelo espaço onde ocorre – o L’Osservatore é publicado desde 1861 e pode ser tomado, em maior ou menor medida, como uma orientação para entender muitas posições oficiais – e o momento escolhido. E, como explica Vian, as críticas só foram publicadas agora para evitar sua instrumentalização, que tende a ser comercial. Quando o jornal da Santa Sé fala de uma obra de arte ou de um produto cultural é tentador procurar a bênção ou a excomunhão do Vaticano nas entrelinhas. Aconteceu com outros filmes – Habemus Papam, de Nanni Moretti, que não se saiu muito bem – ou com obras musicais como as dos Beatles, com quem sempre foi favorável.
Mas aqui cabe se pronunciar sobre o fictício Pio XIII (interpretado por Jude Law na série), uma criatura sorrentiniana com referências a Eugenio Maria Giuseppe Giovanni Pacelli, conhecido como Pio XII, líder da Igreja durante os anos mais convulsivos da Europa. Um Papa autoritário e narcisista que, cronologicamente, poderia ser o sucessor de Francisco e que censura completamente a projeção de sua imagem para não saturar o discurso espiritual. Mas, como Scaraffia explica em sua crítica ao roteiro e apesar dos histrionismos do personagem, não foi percebida como uma série contra o clero ou a Igreja.
O Vaticano negou permissão a Sorrentino para rodar em seu interior. Embora a realidade seja que essa permissão nunca é concedida. Do contrário, como explica Vian – que acompanhou o diretor napolitano pelo labirinto e pelos jardins do Vaticano antes de começar a rodar para que ele pudesse ter uma ideia de como era o cenário –, esse pequeno território estaria ocupado 365 dias por ano por equipes de filmagem. O diretor do jornal do Vaticano, reconhecido especialista em história da Igreja, acredita que a obra “tem muito menos erros do que o normal”. “Estamos no nível dos grandes filmes. E quase diria que o interior do Vaticano é mais bem reconstruído aqui. É um filme muito culto e refinado, até excessivamente”, afirma.
Mas Francisco o assistiu? O Papa não assiste à televisão e pouco senta para rever alguns filmes, como ele mesmo explicou. Mas o fizeram muitos sacerdotes, monsenhores e alguns trabalhadores do Vaticano consultados por este jornal. Há reações de todo tipo. Especialmente amargas quando a paciência e o tempo livre não permitiram ir além da caricatura dos dois primeiros capítulos. “Sorrentino já avisou que era preciso assisti-la inteira para julgá-la”, lembra o diretor do L’Osservatore. Mas são valorizados o respeito pelos detalhes e o evidente fascínio de Sorrentino pelo mundo eclesiástico – seu secretário de Estado, interpretado por Silvio Orlando, é sua expressão mais elevada. “Não será do agrado de todos, mas certamente interessou muito. É por isso que decidimos dedicar tanto espaço”, diz Vian.
Porque ninguém tem dúvida de que O Jovem Papa, a história de um pontífice que duvida da existência de Deus, fala sobre a Igreja e o Vaticano. Mas, acima de tudo, fala de como um dos homens mais poderosos da Terra se propõe a fazer uma revolução de matizes autoritários enquanto descobre, completamente excedido, que o único caminho possível é o amor.
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