Roteiristas negros para diversificar as histórias televisivas na América e no mundo
Vis Américas, estúdio que elabora conteúdos para Paramount+, Nickelodeon, Comedy Central e outros canais, cria uma equipe de escritores afro-brasileiros
O VIS Américas ―estúdio que cria conteúdos para a Paramount+, Nickelodeon, Comedy Central e outras marcas da ViacomCBS―, acaba de criar o Narrativas Negras, uma equipe de roteiristas brasileiros negros, como parte de seu projeto de produzir programas, séries, filmes e outros conteúdos que mostrem uma diversidade maior que os mundos retratados na tela. A ideia é que as telas espelhem as múltiplas realidades sociais do Brasil. Mais da metade dos brasileiros é de pretos e pardos, descendentes de africanos escravizados, uma realidade a que a publicidade se adaptou mais rápido que os veículos de comunicação. E, mesmo que há tempos os afro-brasileiros apareçam nas telas, seus personagens quase sempre são elaborados por brancos. O plano é que, em seis meses, as ideias do grupo resultem em quatro histórias que sejam a semente de novas produções.
Marton Olympio, que lidera o quinteto, diz em uma entrevista por videochamada que “durante muito tempo, o negro no Brasil foi objeto de novelas, de filmes... agora começará a ser sujeito.” Ou, nas palavras do diretor do VIS Américas, Federico Cuervo, pretendem que o estúdio produza conteúdos na América Latina para audiências da região e globais, “dê voz por trás das câmeras e diante delas aos afrodescendentes brasileiros”. Como mandam estes tempos de pandemia, os roteiristas trocam ideias por Zoom de suas casas, onde também é a entrevista em uma conexão Rio-São Paulo-Buenos Aires.
O quinteto de criadores de conteúdos televisivos compartilham a cor da pele, mas suas origens profissionais são bem diferentes. Incluem, além de uma roteirista clássica, uma atriz de teatro, um quadrinista e a autora de três novelas. Uma está em Brasília, um mora no sul privilegiado do Rio de Janeiro, outra na periferia mais pobre da cidade... “O encontro está funcionando muito bem”, afirma Olympio, porque “dentro das narrativas negras existe diversidade. Nem todos os brancos são iguais e têm a mesma forma de ver o mundo”. As vozes e anseios dos negros também não são uniformes.
Os protestos antirracistas pela morte de George Floyd, como aconteceu antes com o movimento #MeToo, colocaram o foco global em questões raciais e de gênero. Fenômeno que levou empresas e instituições de todo o mundo a fazer um exame de consciência, primeiro, e depois projetar e implantar programas sistemáticos para ampliar a diversidade de gênero, racial e de orientação sexual em seus quadros, criações, candidaturas, júris...
Fruto de um processo de reflexão interna de meses, a ViacomCBS anunciou no final do ano passado que dedicará 25% de seu orçamento na América Latina a criar e desenvolver conteúdo negro, mestiço e indígena. Como acontece no Brasil, o restante do continente também projeta uma imagem muito mais branca do que a real. “Significa potencializar a diversidade, a equidade e a inclusão”, diz Cuervo, que considera esse projeto “o primeiro passo” da empresa que também cria conteúdos para a Telefe, Porta dos Fundos e para terceiros.
Os dois frisam que os escritores não estão elaborando roteiros, e sim que pretendem criar histórias que depois podem se materializar em formatos muito diversos. Essas ideias “podem acabar sendo uma comédia romântica, um filme de ação, um de terror. Precisamos ampliar os registros. Existe um mercado ansioso para ver negros se amando, rindo em comédias”, explica.
O diretor do VIS América frisa que o Narrativas Negras não nasceu para atrair novas audiências. Afirma que a empresa já tinha roteiristas negros antes e que suas produções espelhavam uma certa diversidade social. A diferença, diz, é que “agora existe uma estratégia clara frente ao que antes eram arroubos esporádicos e individuais”. E menciona como exemplos os esforços da equipe para dar visibilidade a pessoas transexuais na Argentina e indígenas no México.
O chefe da equipe insiste na necessidade de romper esquemas, de sair dos estereótipos. É ir além do papel a que frequentemente os afro-brasileiros foram relegados, um lugar cujo símbolo é o filme Cidade de Deus, que rodou o mundo em 2002 e é para boa parte dos estrangeiros sua única referência sobre a vida nas favelas.
Acrescenta que querer aspirar a deixar para trás esses moldes não significa esquecer problemas inquietantes como o racismo. “Não vamos fugir dos desafios pendentes, é impossível não falar de racismo como a pandemia demonstra hoje”, afirma Olympio. De fato, a desigualdade nascida nos tempos da escravidão no Brasil e nos EUA significa que o coronavírus é nos dois países mais mortífero para negros do que para seus compatriotas brancos.
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