A realidade do coronavírus e a fantasia da democracia racial no Brasil
Uma mulher negra, marginalizada e oprimida, quando adoece, encontra maiores barreiras no acesso à saúde. Um tratamento igual só será possível se essa diferença for compreendida
O mundo está sendo sacudido por uma das maiores e mais mortais emergências sanitárias já vistas. Ao mesmo tempo, está diante do debate mais abrangente sobre racismo na história recente. As organizações de ajuda humanitária mergulham no primeiro tema por um dever intrínseco à sua própria existência: salvar vidas e aliviar sofrimento dos mais vulneráveis, sem discriminação. O segundo tema chega de forma acidentada e obriga revisitar velhos tabus, habitantes históricos do fundo das gavetas de grandes organizações governamentais e não governamentais. Esse artigo busca contribuir para a reflexão que inexoravelmente deve juntar três peças: a pandemia de covid-19, o racismo e o papel do mundo humanitário.
O Brasil é um ponto onde os três temas convergem. É um dos países mais afetados pela covid-19 no mundo, e recentemente ultrapassamos a triste marca de 100 mil mortes e 3 milhões de casos. Sem perspectiva real de arrefecimento ou controle da crise, ouvimos que “o vírus não escolhe vítimas”. Democrático, não vê cor, gênero e classe social. No entanto, a proporcionalidade de contágio, as repercussões sociais e econômicas e a possibilidade de tratamento/cura têm cor, gênero e classe. Diferentes grupos de pesquisas no Brasil começam a organizar os dados da covid-19 de acordo com essas variáveis. Os primeiros resultados já apontam que há menos letalidade entre brancos e mais escolarizados. Ou seja: negros com baixa escolaridade morrem mais por covid-19, e não é coincidência.
O Brasil incluiu na fantasia de seu imaginário a “democracia racial”. Essa seria uma terra livre de discriminação baseada na raça, com igualdade e uma convivência fraternal. Não é preciso muito para derrubar essa mentira. Um exemplo próximo é a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), de 2019, do IBGE. São majoritariamente negras as pessoas que vivem na pobreza (32,9% negros contra 15,4% brancos), extrema pobreza (8,8% contra 3,6%). Segundo este e outros levantamentos, negros são maioria também entre os que têm as piores moradias, os em situação de rua, os trabalhadores informais e entre os que sobrevivem do lixo. Têm menos acesso à água e saneamento, à alimentação adequada e a cuidados médicos —condições para uma boa saúde. Com que argumentos podemos ao menos supor que a covid-19 atingiu “de forma democrática” brancos e negros no Brasil?
Para uma organização humanitária, porém, não importa se um paciente é negro ou branco. Essa “não discriminação”' ou imparcialidade é um princípio e é parte do conjunto de valores mais seminais da resposta humanitária. Baseia-se no pressuposto de que “todos devem receber o mesmo apoio”, levando-se em conta exclusivamente as suas necessidades.
O humanitarismo gira sob a égide da igualdade, mas o debate candente, urgente, inadiável do racismo nos obriga a pensar em equidade. A equidade busca reconhecer necessidades de grupos específicos e almeja reduzir o impacto das diferenças, inclusive no acesso a saúde.
A equidade —que felizmente é um dos pilares do Sistema Único de Saúde do Brasil— nos desafia a pensar sobre o fato de que as pessoas podem precisar de diferentes tipos de apoio e abordagens, em distintos níveis e graus, para que a igualdade seja alcançada, inclusive num trabalho humanitário. Uma mulher negra, marginalizada e oprimida pela violência física e simbólica, quando adoece, encontrará maiores barreiras para acessar a saúde. Essa desvantagem social deixa marcas físicas, emocionais e psicológicas. Um tratamento igual, nesse caso, só será possível se essa diferença for compreendida, incorporada em nossas metodologias de assistência, trabalhada com nossos profissionais e deixar de ser um tabu. Observar diferenças e dar apoio na medida necessária àquele que está em clara desvantagem é reforçar a igualdade.
A covid-19 deixará marcas indeléveis. Além de mortes e do choque econômico, a doença eviscerou a dívida histórica com a população negra. A sincronia da pandemia com a explosão do debate sobre racismo desafiam as instituições, incluindo humanitárias, a não só reconhecer que as estruturas sociais estão forjadas no racismo, mas a endereçar reflexões profundas e fomentar políticas de combate. Não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, e já estamos muito atrasados nesse enfrentamento. O primeiro grito de basta foi dado nas ruas, e ninguém mais pode ignorar. É hora de países, organizações e empresas ouvirem esse grito, processá-lo e dar respostas objetivas e urgentes.
Renata Reis é doutora em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela UFRJ e especialista em acesso humanitário para América Latina de Médicos Sem Fronteiras.
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