Trégua na Cidade de Deus
O Rio de Janeiro adotou esse subúrbio, imortalizado no filme homônimo de Fernando Meirelles, como uma vitrine na qual a cidade mostraria ao mundo sua metamorfose em direção a paz
"Podem entrar sem problema, aqui as câmeras e as televisões são bem vindas" , diz amavelmente o soldado Fabrício, que monta guarda num posto da Política Militar plantado na Praça Padre Júlio Groten, num dos principais acessos à favela Cidade de Deus, encravada na zona oeste do Rio de Janeiro. Cai a tarde e a Rua Josias, artéria comercial desse subúrbio, pouco a pouco vai se inundando de gente que passeia ou bebe cerveja nos bares, de camelôs que vendem relógios ou perfumes de contrabando nas calçadas, de carros tunados que abrem caminho entre os cães e as motos.
A Cidade de Deus continua sendo o mesmo subúrbio infestado de montanhas de luxo e paredes caindo aos pedaços, que vibra com uma população majoritariamente jovem e otimista, mas também registra uma notável diferença: os soldados do narcotráfico local já não passeiam livremente com os fuzis na bandoleira, se exibindo diante das adolescentes e se achando os donos da favela.
Destituídos do antigo arsenal (que incluía até armamento pesado capaz de derrubar aeronaves) e acéfalos de sua antiga cúpula criminosa, agora eles se escondem como ratos nas zonas mais inexpugnáveis da comunidade para vender cocaína, êxtase e maconha a portas fechadas, sem chamar a atenção. A dialética dos revólveres perdeu fôlego até ficar relegada a algo residual.
A esta situação se chegou progressivamente desde fevereiro de 2009, quando o governo do Rio de Janeiro instalou na Cidade de Deus a segunda Unidade da Polícia Pacificadora (UPP) da história do programa (hoje funcionam 36 dessas unidades em mais de 200 favelas onde vivem mais de 1,5 milhão de pessoas).
A dialética dos revólveres perdeu fôlego até ficar relegada a algo residual
As patrulhas dos agentes pacificadores são constantes nos meandros da favela. Normalmente transcorrem em paz, embora algumas vezes se desencadeiem tiroteios entre policiais e grupelhos de traficantes que resistem a aceitar a ocupação do Estado.
No fundo, na CDD (como é conhecida a favela na gíria local) todo mundo sabe que existe um pacto tácito de não agressão entre os agentes e os criminosos: enquanto não haja ostentação de armas na rua, o arsenal permaneça reduzir à sua mínima expressão e não tentem impor uma lei paralela na vizinhança, os traficantes locais se beneficiam de uma certa liberdade para continuar com seu negócio.
Para os criminosos, a palavra chave agora é discrição. Por seu lado, o comando da UPP do Rio insiste em que o objetivo da sua estratégia de segurança pública é acabar com a violência do narcotráfico, não com a venda de drogas.
Ciro, de 52 anos, gerencia um comércio de materiais de construção na Cidade de Deus, leva quase a vida toda vendendo na comunidade e testemunhou o auge e a decadência de todos os chefões locais, como o legendário Mané Galinha, que ele conheceu pessoalmente e pelo qual até sentia uma certa simpatia. "Tudo mudou muito nas últimas décadas.
Nos anos setenta e oitenta tivemos um narcotráfico violento, mas com códigos. Depois vieram outros que permitiram certas coisas antes proibidas, como que as crianças entrassem no negócio e que empunhassem armas. Desde a chegada da UPP, a comunidade está muito melhor e podemos viver com mais tranquilidade", explica. Johnny, de 44 anos, confirma a narrativa de Ciro: "Antes, os bandidos se enfrentavam a tiros diariamente nesta praça. Era muito perigoso. Hoje, a gente pode ver os velhos que se reúnem aqui todas as tardes para jogar cartas".
As patrulhas dos agentes pacificadores são constantes nos meandros da favela. Normalmente transcorrem em paz
Embora a aparência seja de normalidade, o que se respira hoje em Cidade de Deus é, na verdade, uma calma tensa que pode explodir a qualquer momento. "Me dá essa câmera. Espero que você não tenha me feito nenhuma foto", diz um sujeito sentado no interior de um salão de cabeleireiro ao fotógrafo que assina as imagens que acompanham este texto. "Não leve em consideração, o rapaz trabalha para o comando (dos traficantes locais) e se preocupam muito em não poderem ser identificados", esclarece, horas depois do incidente, o cabeleireiro, pedindo anonimato.
Os soldados L. e I. (para preservar sua identidade, nos referimos a eles só com as iniciais) estão a postos numa esquina da favela em pleno labor de patrulha rotineira. "Embora digam que tudo aqui está tranquilo, isso não é verdade. Com frequência temos choques com os traficantes que, embora mais escondidos, continuam ali para dentro".
O soldado P., que monta guarda na base da UPP de Cidade de Deus, acha que o poder público anda não destinou suficientes recursos a essa comunidade para que a população local entenda os benefícios da expulsão do tráfico armado e da entrada da UPP. "Só com uma ocupação policial não se conseguirá a aproximação entre toda essa gente e nós. Por enquanto, o que sentimos aqui é um alto grau de hostilidade", admite.
Com seus mais de 45.000 habitantes, Cidade de Deus está cravada na zona oeste do Rio e desde sua parte mais alta se divisa uma extraordinária vista da Barra da Tijuca, o bairro de classe média alta que está experimentando uma grande expansão imobiliária. O governo do Rio de Janeiro adotou esse subúrbio, imortalizado no premiado filme homônimo de Fernando Meirelles, como uma das vitrines na qual a cidade mais turística do Brasil mostraria ao resto do planeta sua metamorfose em direção a paz.
Não por acaso, o presidente norte-americano Barack Obama, visitou a favela em sua única visita ao Brasil. Nela, foram feitas fotos dele jogando futebol com os meninos locais, algo que reforçou sua imagem de lugar livre da violência do narcotráfico. Hoje, junto à Avenida Cidade de Deus, se ergue um complexo de 50 blocos de apartamentos que albergarão em breve mil famílias de baixa renda beneficiárias do programa governamental Minha Casa Minha Vida.
Trata-se de um passo a mais no caminho para encurralar os problemas endêmicos desse lugar e de tantos outros similares (no Rio, se contabilizam cerca de mil favelas): falta de saneamento básico, de serviços públicos (escolas e centros de saúde, entre outros), de planejamento urbano, de moradias dignas e de segurança. O caminho está traçado, agora é preciso percorrê-lo.
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