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Carlinhos Brown: “Deus não é tão solitário nem tão sofrido assim a ponto de ser domínio de alguém”

O compositor, cantor e multi-instrumentista conversa com o EL PAÍS sobre a indústria da música na era das redes sociais, a percussão como missão social, espiritualidade e amor em tempos difíceis

O artista Carlinhos Brown, em seu estúdio no Candeal, em Salvador.
O artista Carlinhos Brown, em seu estúdio no Candeal, em Salvador.Matheus L8

É entre as ruas estreitas e sinuosas, salpicadas por casas coloridas, do bairro do Candeal, em Salvador, que Carlinhos Brown (Salvador, 58 anos) se sente à vontade como em nenhum outro lugar do mundo. Nesse quilombo urbano —a comunidade foi fundada por Josefa de Santana, uma negra liberta da Costa do Marfim que comprava e libertava escravizados e acolhia fugitivos—, o compositor, cantor, percussionista, artista plástico e multi-instrumentista nasceu, cresceu e criou projetos como o Pracatum, que forma profissionais de toda a cadeia da música e o centro cultural Candyall Guetho Square, coração do bairro. É ali também que Brown compõe todos os dias, com a mesma disciplina de quem faz exercícios físicos, com o amigo Jorge Zárath. “O que me inspira a compor é o fato de que recebo algo que é etéreo, que vem de algum canto da alma, e que me diz que tenho que me manter forte neste momento [de pandemia] para inspirar os outros”, diz al EL PAÍS em uma conversa em vídeo.

Foi assim que nasceu, por exemplo, uma de suas músicas mais recentes, Juliette, mon amour, dedicada à campeã do Big Brother Brasil 2021, que, antes da fama, havia mandado uma mensagem de carinho ao artista. “Gosto dessa força da mulher nordestina. Nós, enquanto nordestinos, sofremos muito durante esses últimos dois, três anos... Parecia até que não éramos brasileiros. E quando você vê uma pessoa, como Juliette, que tem orgulho do que é, chama a atenção”, diz ele, que passou a assistir o reality show depois que as pessoas começaram a falar da paraibana. “O BBB é um momento educativo das relações. Tem muita gente que acha fútil, eu acho que é uma aula de convivência.”

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É com “música e alegria, sem esperar nenhum retorno” que ele tenta dar uma resposta a todos os pensamentos que lhe assaltam neste momento de crise generalizada, que afeta especialmente a indústria cultural. Além da escrita diária, Brown conta que tem pintado muitas telas. Com seus projetos, conseguiu ajudar financeiramente a Timbalada —fundada por ele há 30 anos—, os músicos que trabalham em sua banda e a comunidade onde vive. O que mais lhe orgulha, no entanto, é a parceria firmada entre seu selo, Candyall Music, e as gravadoras ADA e a Warner Chappell para gravar novos artistas. “Tem muita gente com talento, mas com falta de espaço. E o fato de você apenas jogar música na internet por jogar, na aflição e no desejo de dizer algo termina fazendo as pessoas desistirem, porque elas não são monetizadas, e música também é comercial”, explica.

Sobre a indústria da música condicionada às redes sociais —num momento em que dancinhas no TikTok ditam os hits—, Brown propõe uma reflexão sobre os milionários que surgem da noite para o dia ao criar uma nova plataforma e as “bolsas de pobreza” que alimentam os conteúdos dessas redes. “No momento em que um menino do Candeal, da favela da Maré ou dos Alagados faz um funk, ele é vendido por 99 reais para uso nas redes e esse menino recebe 0,37 centavos, estamos promovendo um movimento de consumo de pobreza. Quem somos nós? Consumidores de pobreza”, sentencia.

Carlinhos Brown não quer estar sozinho no topo da pirâmide social. Essa é uma das razões pelas quais nunca saiu da comunidade que é seu berço. “Acredito na educação como mola motriz da formação. Não adianta eu estar sozinho no topo, em solidão, apenas emergindo para o acesso do ter. Nesse sentido ter, é igual a não ter, porque eu vou comer sozinho? A gente precisa do olhar do outro. Esse desejo de estruturar através da educação para que a comunidade tenha oportunidade está ligado ao que aprendi na minha infância: eu não sou artista, eu sou um dos moradores, então tenho que lutar junto com eles.”

Ele se vê como um educador musical —papel que desempenha não só no Candeal, mas também na televisão, como técnico do programa The Voice Brasil— e acaba de ser convidado por uma grande plataforma cultural para ministrar um curso de percussão. “Gostei muito, porque não queria um curso só para ficar dizendo onde colocar a mão, e sim para trazer um discurso da percussão com a responsabilidade da História, a responsabilidade do percussionista como um músico de manutenção das ancestralidades. Também quero quebrar a barreira de que o conceito rítmico só é detido por certas etnias. Não, é do mundo”, afirma.

Brown canta enquanto posa para as fotos do EL PAÍS, no Candeal, em Salvador.
Brown canta enquanto posa para as fotos do EL PAÍS, no Candeal, em Salvador.Matheus L8

Axé

Para Brown, percussão é mais do que bater tambor, é uma missão social. “A percussão e o sexo são as coisas mais antigas do mundo, porque ambas dão a vida”, ri. E a música como herança é um preceito que ele trabalha há três décadas com a Timbalada, que apesar do aniversário que celebra este ano, não terá uma comemoração, devido às circunstâncias. “Quando pudermos, vamos fazer uma grande celebração pautando todas essas Áfricas que a Timbalada recebeu. A Timbalada banda trouxe muita consciência social, a ponto de ter tido condição de comprar um lugar que vendia negros, que é o Mercado do Ouro, hoje o Museu do Ritmo [em Salvador]”, lembra seu fundador.

Comprado em 2007, o local é palco dos tradicionais ensaios de verão pré-Carnaval de Carlinhos Brown e da Timbalada, mas o desejo do artista é transformá-lo, de fato, em um grande centro de história e cultura. “Eu ainda não tive a capacidade de fazer o que eu sonho com o acervo que tenho. Eu brinco que o Museu do Ritmo é o museu do depois do amanhã. Eu não sou um colecionador de memória, o que eu quero é trazer educação, trazer, em espaços que foram de extrema dor para o nosso povo, a oportunidade de exercitar o perdão. É difícil perdoar quando se sofre, mas podemos perdoar sem jamais esquecer.” Brown se considera um rebelde, mas diz que gosta de expressar essa rebeldia através da doçura e do afeto. “Nossa alma não é um arquivo de dor nem de ódio”, afirma.

Pregador do papel social da percussão, inclusive na ressocialização de presidiários, ele recebeu, no final de 2020, o título de Embaixador da Justiça Restaurativa da Bahia. “O movimento axé music é educacional, é um movimento de prática, não é apenas festa. A festa é só no Carnaval, mas, ao longo do ano todo, nós nos propomos a formar pessoas.” É esse tipo de confiança que lhe dá “aquela comichão boa” quando vai fazer música. É no poder da música que ele se apega para manter-se de pé, mas também recorre à espiritualidade, frequentando de terreiros de candomblé a centros espíritas. “Todas as religiões levam a Deus e, às vezes, o homem insiste que Deus está apenas do seu lado. Deus não é tão solitário nem tão sofrido assim a ponto de ser domínio de alguém.”

Carlinhos Brown, sentado na escada do seu estúdio, no Candeal, em Salvador.
Carlinhos Brown, sentado na escada do seu estúdio, no Candeal, em Salvador.Matheus L8

É a essa “despretensão da alma” que ele atribui as pequenas e grandes conquistas em sua vida. Lembra de quando escreveu Teia da felicidade, letra de bons desejos dedicada ao sofrimento italiano nos primeiros meses da pandemia, em 2020, e não pode gravá-la como gostaria, com uma orquestra, por impossibilidades financeiras. Quase um ano depois, recebeu um convite da TV Cultura para gravá-la com a Orquestra Sinfônica de São Paulo. Horas antes da entrevista com o EL PAÍS, Brown havia escutado pela primeira vez o resultado dessa gravação. “Menina, eu fui às lágrimas! Olha aí a despretensão da alma... Meu deus, daquela ponta até aqui eu estou vivo! E pude ter uma realização em um momento de extrema dureza!”, celebra.

Ele também considera que essas realizações são resultados de ações de generosidade. Em seus cobiçados ensaios de verão, que reúnem desde o público do Candeal até celebridades internacionais, quem não tem dinheiro para pagar o ingresso muitas vezes doa um quilo de alimento para entrar. Brown conta que mesmo os mais ricos já chegaram a doar uma tonelada de alimentos quando os ingressos estavam, de fato, esgotados. Graças a esse estoque, não houve fome na comunidade.

“Quando começou a pandemia no Brasil, eu já sabia que iria acarretar fome, aí já comecei a organizar tudo. Meu sentimento culminou numa energia do servir, do fazer. Eu fiz muita música, fiz muitas pinturas, me dediquei ao Instituto de Cegos da Bahia, consegui conceber uma música para Irmã Dulce... É tanta coisa que eu nem me lembro, eu sei que trabalhei bastante, mesmo sabendo que o mercado musical está nas cucuias. Mas eu trabalhei pelo amor, me senti muito reconfortado, me considero um artista renovado”, diz.

Brown fala de tudo, exceto de política, que, segundo ele, chegou a um âmbito de rivalidade de torcida de futebol. Limita-se a dizer que “falta politicidade” entre os governantes. “Eu sou do partido do bom fazer, da construção. Como eu posso ajudar meu país? Eu não tenho crítica a ninguém, porque o tempo passa e cada um vai saber das suas responsabilidades e o que fez ou não de bem.”

Ele é igualmente cauteloso nas redes sociais, onde prefere não se expor muito, principalmente na era da cultura do cancelamento. “O respeito se perde muito no desejo de liberdade. A liberdade é uma criança ávida que termina invadindo espaços que não são dela”, diz. Contrariando todos os prognósticos, Carlinhos Brown é tímido, outra razão de sua persona mais reservada. Como todo mundo, ele tem seus receios. “Sempre tive medo de ter, entre milhões de seguidores, milhões de perseguidores. Quero seguidores que, quando me faltar autocrítica, venham fazer crítica construtiva, não revanchista”.

Apesar do ódio e da dor que vê pelo mundo, acredita que a sociedade está mudando. “A pandemia veio ensinar mais sobre a dor do outro, sobre como nós somos frágeis em relação ao viver. Meu desejo é um só: que toda forma de violência morra com o vírus.” Um desejo que faz eco da sua Teia da felicidade: o amor tornará / tudo irá curar / tudo passará.

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