Gilberto Gil: “Os músicos nos vendemos em parte ao mercado”
Cantor brasileiro faz turnê para comemorar os 40 anos de ‘Refavela’, um de seus discos fundamentais
![Jesús Ruiz Mantilla](https://imagenes.elpais.com/resizer/v2/https%3A%2F%2Fs3.amazonaws.com%2Farc-authors%2Fprisa%2F6a8979ac-e7b3-4e49-a28d-8ef780472c20.jpg?auth=adca90b9344430353a3efa521c6f05b31de12fb2c013241bb04b919b8e0a8605&width=100&height=100&smart=true)
![Gilberto Gil durante um show em São Paulo.](https://imagenes.elpais.com/resizer/v2/TOUH3DJV7BO3TPTZ53F2TKUSJU.jpg?auth=5af0c7571b97c0fcd0e8fb1dbe4184a2441b5c86ee46b4a8407197217bc92e03&width=414)
Houve um tempo em que Gilberto Gil (Salvador, 1942) era otimista. Mesmo nos dois meses que compartilhou prisão com Caetano Veloso, naqueles anos sessenta em que ambos forjavam o tropicalismo, arriscando a pele diante da ditadura instalada após o golpe militar de 1964. Inclusive durante o exílio em Londres, ao qual se viu posteriormente forçado, Gil sorria com esperança quanto ao futuro, enquanto protagonizava a revolução social dos costumes, de sanfona e violão na mão, junto com membros de grupos como Pink Floyd e Yes. Conseguiu então penetrar nos ambientes do pop hippie britânico. Participava com suas tranças e seu sorriso de sambista de festivais como os da ilha de Wight e recebia convites para o line-up de Montreaux, na Suíça.
Naqueles anos setenta ele era feliz. Contagiava e armazenava uma experiência global que o levaria a ser ministro da cultura no Governo Lula, entre 2003 e 2008. Também então, Gilberto Gil acreditava que era possível transformar diretamente as coisas. Agora não. Agora duvida. Agora, com 55 anos de carreira nas costas e uma longa trajetória política dentro da esquerda e do ambientalismo, confessa estar pessimista. “Vivemos um retrocesso, neste momento é que precisamos mais do que nunca sair para cantar”, diz.
Fala isso por telefone da Rússia, aonde viajou para ver alguns jogos da seleção brasileira na Copa antes de iniciar a etapa europeia de uma turnê que comemora os 40 anos do lançamento de Refavela, um de seus discos fundamentais. “Aquele disco pertence a um momento em que experimentávamos fusões e estabelecíamos relações até então desconhecidas entre o Brasil, a África, a Jamaica, o Caribe... Isso que agora é natural, mas na época não era.” Então nascia aquilo. A busca, a mestiçagem tingida de mensagem política que foi a marca do movimento criado por Gil, Caetano, Maria Bethânia, Gal Costa, Tom Zé… Aquilo que depois marcou o caminho para músicos de todo o mundo, entre raízes do samba e irmanações africanas e americanas, sem renunciar ao rock e ao pop. A lenda do tropicalismo.
“Vivemos um retrocesso, neste momento é que precisamos mais do que nunca sair para cantar”
Foi uma revolução nada silenciosa. Mas com um ritmo musical e sociocultural factível, em escala humana. Não como o presente: “Tudo muda muito rapidamente. Um país como o Brasil está acelerado, metido numa dinâmica permanente.” Mas não na direção correta, segundo Gil. “Para trás. Com muita força. Em diferentes aspectos. Não precisamente bons. Tudo o que acreditávamos que cresceria depois da metade do século XX, a pluralidade, a tolerância, retrocede.”
A tecnologia não ajuda: “A revolução cibernética, a Internet, as redes sociais são um fenômeno novo e abrasador que tumultua o ambiente, nem sempre para bem.” Algo ideal teria sido que um impulso como o seu, em conivência com ferramentas como as atuais, confluísse para algo digno. Mesmo assim, acredita que a potência criativa dos mais jovens encontrará espaço: “Em uma rica multiculturalidade e com diferença de visões. Hoje existe uma potência criativa nova muito variada e com muitas inquietações em muitos campos.”
Mas grande parte dos aspectos da mudança radical que eles perseguiram ainda estão pendentes: “Ideias não cumpridas, transformações éticas e estéticas. Muita coisa não aconteceu. Chegamos a aceitar um capitalismo propiciado pela democracia que em inúmeros casos fracassou. O que temo é que faremos uma debacle da civilização por culpa da tecnologia, da inteligência artificial, que tudo isso produza um vazio geral.”
Por isso, talvez agora mais do que nunca, ele sente a necessidade de cantar, de levar sua música pelas esquinas. “Temos enormes desafios pela frente. A adaptação ao meio ambiente, um crescimento esmagador da população mundial, demandas vertiginosas de recursos naturais. Diante disso, a música é um bálsamo, um unguento contra essa debacle. Temos mais responsabilidade que nunca, contagiar essa alegria e essa consciência para as pessoas, esse entusiasmo pelos assuntos importantes, não pelo superficial.”
Voltar a um espírito reivindicativo. “Conseguir penetrar no sistema político, econômico, que seja uma resposta ao que nos cerca.” Sente-se responsável por ter talvez baixado a guarda em algum momento: “Em certo ponto, os músicos vendemos nosso espírito ao material, ao capital, ao negócio que nos cercava, e contribuímos para esse paradoxo da pós-modernidade.”
Todo isso o empurra a sair, escoltado pelas novas gerações: “Fazer esta turnê foi ideia do meu filho Ben e de amigos deles e meus. Eles compreenderam essa função de desenvolvimento natural do nosso legado, como ele pode contribuir para o equilíbrio do sistema se ajudarmos as pessoas a compreenderem o que está acontecendo”.