Uma faísca chamada Libelu tomava as ruas de 1977
Documentário retrata o movimento de jovens de classe média que desafiou a ditadura para ampliar o grito popular contra o regime militar
Jovens estridentes, quase todos brancos de classe média, cultos e impetuosos. A corrente Liberdade e Luta, ou simplesmente Libelu, nasceu dentro da Universidade de São Paulo (USP) durante os anos de chumbo no Brasil, e virou uma lenda dos movimentos estudantis. Numa busca no Google, as referências à Libelu não são vastas. Algumas atreladas ao ex-ministro petista Antonio Palocci, que foi militante do movimento quando estudava Medicina na USP de Ribeirão Preto. Agora, o documentário “Libelu – Abaixo a ditadura” remonta a história deste grupo que foi uma faísca importante na segunda metade dos anos 1970 para ampliar o grito popular pela queda do governo militar.
O que não está no Google segue vívido na memória destes sessentões que continuam dando o que falar. Muitos nomes em destaque no Brasil de hoje beberam da fonte da Libelu, como o economista Eduardo Gianetti da Fonseca, os jornalistas Reinaldo Azevedo, Laura Capriglione, Mario Sergio Conti ou o crítico gastronômico Josimar Melo. O fascínio por aquela época fez até Palocci render-se ao apelo do jovem diretor estreante Diógenes Muniz e deixar-se filmar para dar seu depoimento sobre a Libelu. Muniz seguiu com tripé e câmera para encontrar o ex-ministro em sua casa, enquanto ele encara a prisão domiciliar negociada após se tornar delator na Lava Jato.
No documentário, que será exibido no próximo dia 30 no festival É Tudo Verdade, Muniz traz um pouco de seus cinco anos de pesquisa sobre a Libelu, que se mescla com a história da ditadura e do movimento estudantil brasileiro. “Era o ressurgimento do movimento estudantil nos anos 1970, e a Libelu era a corrente mais sonora e que mais representava o choque cultural nesse período”, conta Muniz. Aos 34 anos, o jovem diretor se sentiu atraído pela história do movimento depois de acompanhar as jornadas de junho de 2013, uma explosão de protestos que o Brasil nunca havia visto ao longo de toda a redemocratização. Foi dessa observação que Muniz começou a prestar atenção na história dos movimentos de rua no país. “Em 1977 houve uma onda de protestos que começou aqui em São Paulo, em plena ditadura. Isso me fascinou”, explica.
Ligado à Organização Socialista Internacionalista, a Libelu era o braço universitário que estimulava protestos nas ruas, enfurecia a polícia e lograva a proeza de sair (quase) ileso em plena vigência do terrível Ato Institucional número 5 (AI-5). Nem que para isso fosse necessário correr freneticamente pelas ruas do centro de São Paulo fugindo dos cassetetes, ou correr por telhados de casas vizinhas à Pontifícia Universidade Católica (PUC). “A gente era realmente porra louca”, diz Josimar Melo, hoje um prestigiado especialista gastronômico.
Mas os libelus eram, digamos, porra loucas com classe. Leitores vorazes, tinham de Bob Dylan e Rolling Stones, André Breton a TS Elliot entre algumas de suas referências. A maioria bem nascidos, nadavam contra a corrente de alguns dogmas da esquerda da época. Fugiam das drogas (bom, nem todos), repudiavam a luta armada e eram disciplinados, sem se encaixar num estereótipo específico. Eram mais rock and roll e menos MPB. Queriam contestar a ditadura nas ruas, enquanto outras correntes de oposição aos militares no movimento estudantil buscavam palavras de ordens com um tom abaixo (“Pelas liberdades democráticas”, por exemplo), para evitar mais sangue da repressão militar, que matou estudantes, militantes e jornalistas.
“Pequenos e ruidosos”, como foram definidos por uma revista, os libelus buscavam brechas e calculavam rotas de fuga quando planejavam ocupar as ruas. Encontros às escondidas, codinomes, e muita esperteza para evitar os falsos estudantes infiltrados, os “dedo duros”, que o governo militar colocava nas universidades. O importante era agitar as massas para que o imobilismo imposto pela ditadura fosse rompido. Certa noite do ano de 1977, na rua em frente à PUC, um cabeludo Josimar Melo com algo em torno de 20 anos ousou soltar o verbo diante de uma multidão que, como ele, ousava se aglomerar ali, a despeito da tensão latente de uma ditadura. “Chega de meias palavras. Falemos abertamente, é preciso dar nome aos bois. O grito de todos nós, agora é a hora. Chega, abaixo a ditadura”. Seguiu-se uma catarse instantânea que incendiou a rua Monte Alegre e marcou para sempre os que viveram aquele momento. Abaixo a ditadura virou um lema dali em diante até 1985, quando de fato o Brasil iniciou sua transição democrática.
As marchas puxadas pela Libelu a partir dali tinham esse grito permanente. Se ganhavam a adesão de jovens impetuosos, tinham também um apoio velado de quem não se atrevia a caminhar junto. “Das janelas dos prédios jogavam papel picado, ou seja, as pessoas sabiam que não tinham liberdade e apoiavam a gente”, diz Melo, que carrega em seu celular a imagem de sua ficha número 9055 do Departamento de Operações Policiais Sociais (DOPS), braço de perseguição da ditadura.
Apesar de perder algumas vezes para a polícia, a memória dos libelus é de vitórias. “Havia muita picardia e inteligência, nos dividíamos em pequenos grupos para facilitar a dispersão em atos de rua”, lembra Cadão Volpato. Em atos táticos, 30 se uniam e se dispersavam em 30 direções. “Hoje eu vejo que em Belarus as manifestações seguem a mesma tática”, compara. Com então 18 anos, Cadão se encantou por aquela turma que vivia a cultura com intensidade. “Era minha turma, minha tribo”, diz ele, que lembra orgulhoso de ter desenhado um dos cartazes que viraram marca da Libelu, com um gato azul onde se lia “Nem todos os gatos são pardos”.
“Um dos sucessos da Libelu foi saber o que gritar e em que momento, muitas vezes contra outra parcela do movimento estudantil”, acredita Muniz. Em tempos sombrios para a democracia brasileira, a Libelu de repente voltou a ficar muito atual. Em algum ponto, ela lembra o Movimento Passe Livre (MPL), de cunho progressista, também formado por estudantes da USP, que puxaram as passeatas históricas de 2013 e que também despertaram uma catarse popular, desta vez, na democracia. Mas ao contrário da Libelu, o MPL foi um grupo que nasceu e foi embora em plena efervescência no país. Involuntariamente, passou o bastão das ruas para um campo de direita, que criou o terreno fértil para o Brasil de hoje.
A Libelu, por outro lado, abriu espaço para novas manifestações, agora puxadas por sindicatos do ABC. “Fomos fundamentais para acelerar a recuperação da democracia no Brasil. A partir de 1979, vieram as greves no ABC, milhões de operários e trabalhadores começaram a se manifestar e o jogo mudou”, diz Melo. O movimento estudantil, então, passou a segundo plano e o país caminhou para o fim da ditadura.
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