Para resistir e deflagrar a mudança, ouça e veja Sérgio Ricardo
De violão em punho, artista desenhou um Brasil, rural e urbano, sertanista e marítimo, tradicional e inovador, oprimido e radicalmente experimental. Ouça playlist preparada pelo curador Diego Matos
Diante da tragédia pandêmica sem precedentes na contemporaneidade, perdemos mais um de nossos grandes artistas: o paulista de Marília João Lutfi, mais conhecido como Sérgio Ricardo, foi-se em 23 de julho. Cantor ou cantador, intérprete ou performer, compositor ou cineasta, Ricardo produzia e experimentava em som e imagem a riqueza de nosso imaginário em sua máxima potência deflagratória e transformadora, constituindo uma paisagem sonora basilar entra tantas possíveis para o Brasil que nos constitui.
Sugiro deixar um pouco de lado a avaliação de que o artista era mais um representante da Bossa Nova que se apresentou no icônico concerto da Bossa no Carnegie Hall, em Nova York. Sérgio Ricardo era muito mais e adiante: experimentou formalmente o trânsito entre música e imagem capturada como ninguém; imprimiu uma força de resistência à produção artística combativa que floresceu nos anos 1960 e se sofisticou nos anos 1970; levou adiante uma performance mais visceral no violão, no canto e na interpretação. Não menos importante, ajudou a moldar a identidade cinematográfica plástica e sonora do Cinema Novo. É bom lembrar que Ricardo era irmão mais velho do já falecido Dib Lutfi, nome incontornável da fotografia de cinema no Brasil.
Se em seus dois primeiros discos pela Odeon ―clássicos formativos de sua trajetória na segunda metade dos anos 1950― mostrou refinamento e precisão na canção popular, desaguou posteriormente no emblemático disco Um Senhor Talento (1963) pelo selo Elenco. Nele, assim como nas produções posteriores, dois caminhos estéticos se insinuaram: a qualificação da música como engajamento sócio-político e também como imagem. Nos anos seguintes, com o advento da ditadura civil-militar, deu rica contribuição à canção de protesto: não como prática panfletária, mas como manifestação estético-política. Aliás, sua voz de locutor, por vezes com a densidade e nobreza de Caymmi, e sua elegância em palco encantaram um jovem fã chamado Chico Buarque.
Foi também nos idos dos anos 1960 que se deu o encontro com Glauber Rocha: uma colisão criativa das mais notáveis da cultura brasileira. O encontro foi selado pelo amigo em comum, o também gigante Nelson Pereira dos Santos: responsável por editar o curta Menino da calça branca (1961), de Ricardo (roteiro, música e direção) e Barravento (1962), de Glauber. É desse encontro e da admiração mútua pelas suas respectivas produções que acredito nascer a tal paisagem sonora, onde som e imagem umbilicalmente constituem um todo. Explico com um exemplo: a canção Barravento do LP Um Senhor Talento, em certo sentido, é reposta sonora ao próprio Barravento de Glauber Rocha. Para algum desavisado, é vista como trilha original da produção glauberiana. Ou seja, duas produções distintas na criação, mas irmãs no imaginário popular.
De formação sólida, o músico foi da atividade profissional como exímio pianista das noites cariocas para o encontro com a tradição musical do Nordeste, trazendo à superfície o som fibroso das vísceras do país: a tradição do samba, a cadência rítmica afrobrasileira e a batida da bossa, o violão de nylon e a viola sertanista, os metais e as cordas, a poesia moderna e o repente, a cantoria popular e o canto cadenciado das boates e dos festivais, o ritual e a encenação. É essa amplitude sonora que cola ao cinema de Glauber Rocha em Deus e o diabo na terra do sol (1964), lançada a trilha pelo seminal selo Forma. E a parceria se repete em Terra em transe (1967), fundando uma espécie de grau zero para uma paisagem sonora do Brasil contemporâneo.
Para além desses standards da música cinematográfica daqui, chamo atenção para dois álbuns dessa trajetória ―subestimados em termos de público, mídia e crítica, mas basilares na consolidação dessa paisagem que se impõe em tempo, melodia e arranjo―: Arrebentação, pelo selo Equipe, em 1971, e Sérgio Ricardo (Piri, Fred, Cássio, Franklin e Paulinho Camafeu), pelo selo Continental, em 1973. Essas paisagens sonoras nos levam à experiência do filme/trilha A noite do espantalho (1973/1974), com os ainda jovens Alceu Valença e Geraldo Azevedo.
O artista nos propõe uma caminhada tortuosa em seus discos. Não procure neles apenas o conforto. A canção Arrebentação que inaugura o disco de 1971 é um abre-alas para algo que está prestes a irromper. É uma das escolhas mais precisas para se começar um disco. Em seguida, seu ouvido cai na melancólica e bonita Labirinto. E assim por diante: uma paisagem complexa de altos e baixos que se desenrolam à medida que as canções passam. Já no disco de 1973, a canção Calabouço evoca de forma enfática uma força de resistência que bem descreve um sentido de sobrevivência. Sugestivamente, o disco termina com a música Tocaia.
Com ampla consciência contextual e política, exímio domínio musical e violão em punho, Sérgio Ricardo sincronizou uma potência em sua produção sonora, ensejou o movimento de um futuro. Por consequência, trouxe a construção de um imaginário sobre uma paisagem de um Brasil, em um só tempo, rural e urbano, sertanista e marítimo, tradicional e inovador, oprimido e radicalmente experimental. A música de João Lutfi é a linha turbulenta em que o sertão e o mar se tangenciam, um lugar de fibra, iminência e transformação. É uma atuação à margem que tesiona a própria margem.
E não é só via Ricardo que essa sonoridade nos impregna. Cada ora à sua maneira, ela está em discos excepcionais colocados também à sombra de nossa história: os discos do selo Quartin (de Roberto Quartin), aqui, especialmente em Obnoxius, de José Mauro, e Vocês querem mate?, de Piri, ambos de 1970. Está também na força que nos impulsiona em Vento Bravo, de Edu Lobo, que abre o disco Missa Breve, de 1973. Poderíamos enumerar uma profusão dessa potência descrita.
Pontuo esse som como essa situação complexa que a arte brasileira em todos os seus caminhos e manifestações radicalizou e experimentou nos complexos anos de 1970. Se de fato há um consenso de um suposto vazio cultural determinante naqueles anos, caracterizando em história oficial a condição de uma paisagem cultural desoladora, turvada por repressão e censura, a produção de Ricardo é uma permanente ação de resistência diametralmente oposta a isso. É ele a pessoa por trás dos compactos da série Disco de Bolso, do Pasquim. Assunto que mereceria ensaio próprio.
Aliás, o disco A grande música de Sérgio Ricardo (1967) é um bom ponto de partida para migrar de um artista lapidado nos anos 1950 para um radical nos anos 1970. Não foi à toa que Kleber Mendonça e Juliano Dornelles escolheram a canção Bichos da Noite para compor justo a cena em que se vela o corpo da matriarca e se faz uma procissão pela cidade de Bacurau. Curiosamente, no front está o violeiro, interpretado pelo músico cearense Rodger Rogério, figura fundamental do Pessoal do Ceará, grupo de artistas que foi lançado justamente naquele início da década 1970. Com o canto de Sérgio Ricardo, o ritual põe a população em um outro estado de consciência: estado que se vê nas novas gerações que encheram as salas de cinema para ver uma produção autoral. Não por acaso, a canção é a mais tocada do artista na plataforma Spotify.
Portanto, para as gerações em vida há um novo e duplo compromisso: salvaguardar uma memória em som e imagem do artista e assumir a potência deflagratória que o ambiente cultural dos anos 1970 nos deixou. Em momento tão nebuloso e difícil de nossa história, é preciso resistir e constituir movimentos de arrebentação e mudança. Que tal começar a ouvir e ver Sérgio Ricardo?
Diego Matos é pesquisador e curador, doutor pela FAU USP, foi cocurador da exposição ‘Entrevendo’ de Cildo Meireles (Sesc Pompeia).
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