‘Bacurau’ não é sobre o presente, mas o futuro
A transformação de 'Bacurau' numa zona de caça para turistas não é, assim, uma alegoria do imperialismo tirada de alguma cartilha dos anos 60. O que o filme faz é tomar um traço do presente e estendê-lo até o futuro, que é, afinal, onde ele se passa
Assim como Aquarius, a recepção de Bacurau parece comprometida pela expectativa, compartilhada por apoiadores e críticos, de que o filme seja uma análise da conjuntura presente. No caso de Bacurau, a confusão começa já na questão sobre o registro em que devemos lê-lo. A suposta influência de Tarantino é enganosa: não se trata de uma película ao estilo do diretor americano, mas que explora um gênero cultivado por ele e Robert Rodriguez –– algo que poderíamos descrever como filme B de fantasia de vingança coletiva. Bacurau não seria, assim, uma tentativa de copiar, mas de fazer a mesma coisa por outros meios, com referências predominantemente não-hollywoodianas:
Punishment Park (Peter Watkins), The Wicker Man (Robin Hardy) e Brasil Ano 2000 (Walter Lima Jr.), para arriscar algumas. É quando o lemos como filme de gênero que vários traços do filme, como sua violência estilizada, começam a fazer sentido.
O que Tarantino descobriu a partir de Death Proof é que aderir às convenções do filme B lhe permitia ser maniqueísta e didático ao falar de política. Há, claro, uma grande ironia aí: em tempos em que o próprio fim do mundo pode ser assistido com distanciamento irônico, é como se só o distanciamento propiciado pelo artifício e o absurdo nos desse o direito de ir direto ao ponto. Dito de outro modo, é como se a condição necessária para dizer a verdade sem rodeios –– e nada é mais verdadeiro que uma fantasia de vingança –– fosse a inverossimilhança. Porque a verdade, no fim, está menos na caracterização dos personagens ou na plausibilidade da trama que na catarse que o filme provoca ao realizar na tela uma fantasia de vingança –– de mulheres, em Death Proof; judeus, em Bastardos Inglórios; negros, em Django Livre e Os Oito Odiados; e latinos, em Machete.
Sob este aspecto, acusar de didatismo uma cena como aquela em que os estrangeiros humilham os paulistas que os levam à Bacurau é não entender a piada. O esquematismo e a falta de sutileza não estão ali a serviço da mensagem, mas do efeito catártico que a cena proporciona: a vingança é um prato que se come lambuzando-se. Não por acaso, a cena parece ter incomodado especialmente os críticos do sudeste –– o que sem dúvida só faz aumentar o prazer que o público nordestino pode extrair dela.
De onde vem a violência?
Mas se Bacurau é uma fantasia de vingança, quem são os vingados? Reduzir o filme a uma revanche do #elenão é a leitura mais superficial que se pode fazer, seja contra ou a favor. Tampouco podemos dizer que trata apenas dos nordestinos ou sertanejos. Basta projetar sobre o filme um pouco de economia política, porém, e ele se torna bem menos metafórico e bem mais literal. A violência que o filme vinga, passada, presente e futura, é aquela que existe nas fronteiras do capitalismo e do Estado. É a violência a que estão expostos aqueles que, sem nunca serem incluídos por completo nem nos serviços públicos nem no mercado, podem a qualquer momento se tornar objetos do poder político ou do interesse econômico. É a violência que ronda os “involuntários da pátria”, na expressão certeira de Eduardo Viveiros de Castro: indígenas acossados pela fronteira extrativa, camponeses cercados por posseiros e jagunços, favelados ameaçados pela especulação imobiliária, pela polícia, pela milícia. É a violência através da qual o sistema capitalista se expande e se defende; aquela que se manifesta na busca por mão-de-obra e natureza baratas, nos processos de acumulação primitiva e na gestão das populações “excedentes” (leia-se: desprovidas de funcionalidade econômica). Esta violência não é uma metáfora; ela está acontecendo neste exato momento em alguma terra indígena, periferia ou fronteira que, de um ponto mais central das redes que dela se alimentam, nós não vemos ou preferimos não ver.
A transformação de Bacurau numa zona de caça para turistas, mediada pela elite local (o prefeito) e nacional (os paulistas), não é, assim, uma alegoria do imperialismo tirada de alguma cartilha dos anos 60, mas outra coisa. O que o filme faz é tomar um traço do presente e estendê-lo até o futuro –– que é, afinal, onde ele se passa. O resultado é a projeção bastante lúcida de um cenário cada vez mais possível, em que as fronteiras e a violência que as acompanha proliferam e podem aparecer em (quase) qualquer lugar a qualquer hora. Em que há cada vez mais bolsões de pessoas deixadas às margens, sem acesso aos benefícios do desenvolvimento, mas sempre sujeitas a terem uma última gota de rentabilidade extraída de si (o abastecimento de água cortado, o safári humano como serviço de luxo). Em que as populações “excedentes” se tornaram tão numerosas que seu manejo é feito ao ar livre, em execuções em massa exibidas pela televisão. Em que extrativismo e exterminismo finalmente tornaram-se inteiramente reversíveis.
Quem viu os discursos de Donald Trump e Jair Bolsonaro na ONU reconhecerá este cenário. O negacionismo climático não é burrice, mas a aposta de setores que já assumiram que a manutenção de suas condições atuais de vida tornou-se incompatível com a sobrevivência da grande maioria. O antiglobalismo não é um desvario, mas a justificativa ideológica de quem já percebeu que, sem uma correção radical de rumo –– justamente o que eles querem evitar ––, o capitalismo não dá mais para todo mundo. O resultado disso só pode ser, de um lado, o caos crescente causado pela crise ambiental, pela extinção de qualquer rede de proteção social, pela automação do trabalho e pelo empreendedorismo predatório; e, de outro, a formação de enclaves fortemente protegidos. Morador da Barra da Tijuca, Bolsonaro pode, pelo menos nesse sentido, dizer que vem do futuro.
Famosamente, Michel Foucault chamou de “biopolítica” um acordo tácito entre governantes e governados estabelecido a partir do século XVIII. Em troca de potencializar a utilidade econômica dos governados, os governantes assumiam o dever de fazer viver (através de políticas de saúde, seguridade, legislação trabalhista...), reservando para ocasiões extraordinárias o direito de deixar ou fazer morrer. Esta biopolítica sempre foi inseparável, nas suas fronteiras, de uma violência letal: para que algumas populações vivessem dentro de certos parâmetros, era preciso que outras fossem exploradas até à morte. O nazismo apenas levou esta lógica às últimas consequências.
O cenário que Bacurau e a extrema direita mundial projetam aponta para a dissolução deste pacto e uma virada abertamente necropolítica do capitalismo. Num mundo de concentração de renda astronômica, degradação ambiental crescente, recursos cada vez mais escassos e aumento das populações excedentes –– desempregados estruturais, refugiados climáticos, população carceral ––, o Estado tende a eximir-se da responsabilidade de fazer viver e a privatizar –– para empresas de segurança, “empreendedores” e “cidadãos de bem” –– o direito soberano de fazer morrer. Vista assim, a combinação de ultraliberalismo e culto da violência de Trump e Bolsonaro faz perfeito sentido.
Se Bacurau pretendia ser uma previsão do futuro próximo, aliás, aí está seu maior deslize. Na figura de Tony Jr., o típico político moderno filho do latifundiário local, Bacurau parecia apostar que quem se beneficiaria da crise econômica e política seria a direita liberal que historicamente cumpre no Brasil a função de ser o lado civilizado da família dos coronéis e senhores de escravos. Como muita gente, Kleber Mendonça não foi capaz de imaginar que, não achando um candidato viável entre o quadro de sócios do Country Club, a elite brasileira optaria por botar o capataz da fazenda na presidência.
Vá na paz?
Em Bastardos Inglórios, Tarantino inclui uma cena (o assassinato de Hitler) cuja função é lembrar-nos que aquilo é só uma fantasia. A droga que os moradores tomam em Bacurau talvez também deva ser interpretada assim. A catarse é um poderoso psicotrópico e cria um sentimento de comunhão inclusive com gente com quem há pouco em comum: muitos daqueles que se identificaram com Bacurau talvez defendessem em outras oportunidades a necessidade de uma aliança com Tony Jr. Passados os efeitos da droga, porém, continuamos no mesmo lugar. Como sair? É neste ponto que o filme foi mais criticado, a violência dos personagens sendo entendida como um apelo à radicalização num momento em que seria preciso desarmar a polarização política. Mas enquanto a questão se resumir a “é preciso radicalizar ou deve-se dialogar com o centro?”, o problema estará mal colocado.
Primeiro, porque carece de conteúdo concreto. Radicalizar como? Em relação a quê? Dialogar sobre o quê? Em quais bases? Com qual centro? É isto que falta responder. Segundo, porque parece supor que sair da polarização envolveria tirar a média aritmética dos extremos existentes. Mas quando os extremos são o reformismo fraco do PT e a terraplanagem bolsonarista, o meio-termo fatalmente estará bem aquém do necessário. O erro implícito aí é, terceiro, tratar centro e extremos como coordenadas que estão dadas, quando o objetivo da política é justamente transformar as coordenadas –– ou, como entendeu o ideólogo conservador Joseph Overton, fazer com que o centro se desloque em nossa direção. É exatamente isso que a extrema direita tem sabido fazer, e não foi com “bom senso” que eles ocuparam esse lugar.
Quarto, porque supõe que bom senso era o centro do debate político tal como este existia até alguns anos atrás, e que é a este centro que deveríamos voltar, contra extremos irreais. O que este realismo não entende é que as condições materiais e políticas para aquele consenso deixaram de existir: não há retorno possível. O único caminho possível hoje é na direção de redefinir o centro, criar um novo consenso –– e, novamente, foi a extrema direita quem entendeu isso primeiro, mas para propor um projeto que é sustentável apenas para os muito poucos. Por último, o problema é mal posto porque, como a menina Greta Thunberg tem mostrado, diante de questões como o aquecimento global ou o futuro que a extrema direita prepara, não há mais tempo ou espaço para soluções de compromisso: ou diz-se um não definitivo à barbárie, ou não se está dizendo rigorosamente nada. A este não ainda é preciso, sem dúvida, dar a forma concreta de programas, propostas, ações. Mas ou se faz isso ou não se faz nada: fingir que tudo pode continuar como está é a posição menos realista a essa altura.
Rodrigo Guimarães Nunes é professor de filosofia moderna e contemporânea na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e autor de Organisation of the Organisationless: Collective Action after Networks. Seu novo livro, Beyond the Horizontal. Rethinking the Question of Organisation, sairá em breve pela editora inglesa Verso.
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