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Octavia E. Butler: a ressurreição da grande dama da ficção científica

Não reconhecida em seu tempo, a primeira escritora negra do gênero está sendo publicada no Brasil e entrará no próximo ano no catálogo norte-americano com novas edições de seus romances e contos

Octavia E. Butler, em uma imagem da década de 80.
Octavia E. Butler, em uma imagem da década de 80.
Laura Fernández

Octavia E. Butler escreveu seu primeiro conto aos 12 anos. Tinha assistido a um filme horrível, intitulado A Garota Diabólica de Marte, e havia dito a si mesma, enquanto o via, que podia fazer melhor. Já fazia anos que a pequena Octavia devorava histórias de ficção científica. Comprava revistas compulsivamente. As clássicas da época – final dos anos 50, início dos 60 −, Amazing e Fantasy and Science Fiction, além de Galaxy. Embora nenhum dos protagonistas das histórias que lia tivesse sua cor de pele, ela não se importava, porque iria mudar as coisas. Primeiro cuidaria daquela garota diabólica de Marte, depois do resto.

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N. K. Jemisin, sua principal herdeira, hoje no topo do gênero – não há escritora mais premiada do que ela no momento, independentemente do gênero −, era uma adolescente quando se deparou pela primeira vez com uma das histórias de Butler. “Nada tinha me preparado para aquilo”, disse Jemisin. Corriam os anos 80, o livro se intitulava Despertar (Editora Morro Branco) e era protagonizado por uma mulher negra que acordava 250 anos depois de um holocausto nuclear. “Lembro que fiquei fascinada ao pensar em uma mulher negra habitando o futuro. Ninguém tinha feito algo assim antes na ficção científica”, afirmou a escritora, a única pessoa a ganhar o prêmio Hugo três vezes seguidas.

Embora fosse, sem dúvida, revolucionária, Butler não ficou famosa em sua época, mas muito depois. Na verdade, a fama chegou depois de sua repentina morte, em 2006 – estava passeando, caiu e bateu a cabeça na calçada. Tinha 58 anos, e não ficou claro se a queda foi provocada por um infarto. Foi aí que seus romances, até então de pequeno alcance, começaram a vender cerca de 100.000 exemplares por ano. Nascida em Pasadena, Califórnia, em 1947, filha de um engraxate e uma criada, Butler cresceu com sua avó – seu pai morreu jovem, e sua mãe trabalhava o dia inteiro. Filha única e solitária, desenvolveu, para se distrair, uma enorme imaginação.

Imaginação que deu forma, em 1971, ao seu primeiro conto publicado, Crossover. Uma história de perdição protagonizada por uma mulher que odeia seu trabalho em uma fábrica e não para de pensar em cometer suicídio. “Seguiram-se outros cinco anos de rejeição editorial, e um milhão de empregos, até conseguir vender o próximo”, contou a própria Butler certa vez. Recentemente, Jemisin e outros de seus hoje ilustres leitores, entre eles Marlon James e Nnedi Okorafor, lembraram que a ficção científica nunca foi um lugar amigável para a raça negra – nem para nenhuma que não fosse a branca. “Não se tratava apenas de que a ficção científica fosse racista, os autores também eram”, disse Jemisin.

De qualquer forma, a ficção científica de Butler sacudiu, de sua trincheira sempre inconformista, as bases do gênero, com relações entre espécies, homens grávidos e civilizações submersas, abordando, de seu singular ponto de vista, assuntos como raça – não abordado nesse gênero até então –, família, sexo (tudo o que ela escreveu sempre teve uma poderosa e também inédita ambiguidade sexual), determinismo biológico, ciência médica e classismo. Butler derrubou, um por um, todos os muros que, em sua cegueira existencial, o gênero tinha construído. Ao fazer isso, ela abriu caminho para o que estava por vir: a complexa new wave.

“Quando tenho de enfrentar algo que me perturba, escrevo sobre isso” confessou Butler no epílogo que se segue ao famoso conto Filhos de Sangue, que dá nome à coleção de contos e ensaios que estão sendo publicados no Brasil pela editora Morro Branco e na Espanha pela Consonni. A edição da Consonni, intitulada Hija de Sangre y Otros Relatos, de certa forma ressuscita a escritora em espanhol, pouco antes que ocorra o reconhecimento definitivo de sua importância nos Estados Unidos: no próximo ano, a Grand Central Publishing reeditará grande parte de seus romances e a Library of America a incluirá no catálogo publicando, em um volume, o melhor do que escreveu. Butler queria que se soubesse exatamente por que fez o que fez, porque às vezes tinha a sensação de ler interpretações completamente errôneas de seus contos. “Fico surpresa que algumas pessoas tenham interpretado Filhos de Sangue como uma história de escravidão”, escreveu, por exemplo.

Não, Filhos de Sangue não é uma história de escravidão. “É uma história de amor entre dois seres muito diferentes, e é meu conto sobre homens grávidos”, explica. “Será que eu poderia escrever uma história em que um homem escolhesse engravidar, não por alguma espécie de competitividade mal entendida para demonstrar que tudo que uma mulher faz um homem também pode fazer, nem porque ele fosse obrigado, nem mesmo por curiosidade, e sim como ato de amor?”, perguntava-se. Escreveu. Mas a explicação continua: “Também é uma tentativa de atenuar o medo que tenho da mosca-varejeira, que põe seus ovos em feridas causadas por outros insetos e cresce alimentando-se de sua carne, como um verme”.

A escritora ia viajar para a Amazônia peruana para fazer pesquisas para os livros de sua série Xenogênese e sabia que nessa região podia se deparar com varejeiras. “Escrever sobre meus problemas é minha maneira de colocá-los em ordem”, revela, nesse mesmo epílogo. “Lembro que em uma aula, em 22 de novembro de 1963, peguei um caderno e comecei a escrever minha resposta à notícia do assassinato do John Kennedy”, diz também. E acrescenta algo mais sobre Filhos de Sangue, em um amostra de como tudo que escrevia era caleidoscópico. “Tentei fazer mais uma coisa em Filhos de Sangue. Tentei escrever uma história sobre o pagamento do aluguel”, assinala. Nada de escravidão. Sobre a escravidão, escreveu em Kindred: Laços de Sangue, um romance de viagens no tempo que viaja precisamente a essa época.

Essa pioneira do afrofuturismo também escreveu sobre religiões fictícias (na série Parábola, que finalmente ganhou um prêmio Nebula em 1999) e sobre humanos salvos, uma e outra vez, por raças extraterrestres – isto já ocorre em Filhos de Sangue, que data de 1984, e significou sua entrada no universo, já um pouco mais aberto, da ficção científica, pois conseguiu com ele o Hugo e o Nebula de melhor conto –, como ocorre na série Liliths’ Brood, como também é conhecida a Xenogênese. Escreveu até sobre vampiros. Fledgling foi seu último romance publicado – em 2005 –, uma história de vampiros em um contexto de ficção científica, ligada de certa forma ao universo de Parábola. Também escreveu, é claro, a história sobre A Garota Diabólica de Marte.

Com aquela história, fez seu primeiro romance, que terminou em 1976 e chamou de Patternmaster, mas só o publicou tempos depois, porque o transformou no quinto volume de sua série Patternist. Teve o apoio, praticamente desde o início, de Harlan Ellison e Samuel R. Delany. Pouco antes de morrer, descreveu-se como “uma eremita associal em meio ao pessimismo de Seattle, e se me descuido, uma feminista, negra, batista, com uma combinação impossível de ambição, preguiça, insegurança, certeza e impulsividade”. Esqueceu de dizer que também foi uma garota chamada por sua mãe de Junie que, certo dia, decidiu desligar a televisão e começar a escrever melhor aquilo que estava vendo, porque aquilo que estava vendo não tinha nada a ver com ela.

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