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Decifrando o mistério Bob Dylan e sua nova canção

Em seu segundo lançamento em menos de um mês, o músico dá pistas que poderiam antecipar um álbum inspirado em Walt Whitman

Bob Dylan actuando en Hyde Park, Londres, el 12 de julio de 2019.
Dave J Hogan (Dave J Hogan/Getty Images)

Bob Dylan é hermético, mas também gosta de brincar de despistar. Depois do lançamento não anunciado de Murder Most Foul, uma canção de 17 minutos que se tornou sua primeira composição nova em oito anos, o músico norte-americano divulgou nesta sexta-feira, I Contain Multitudes (eu contenho multidões), outra música sem pré-aviso, a não ser um misterioso tuíte na quinta-feira em sua conta oficial, onde se lia a hashtag #IContainMultitudes. No final, acabou sendo uma prévia do título da canção que horas depois sairia em todas as plataformas de streaming.

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Como tudo no universo Dylan (Duluth, Minnesota, 78 anos), as especulações após a publicação do tuíte correram as redes sociais, em busca de significados com os quais relacionar sua música ao tempo presente, ainda mais por que a mensagem coincidia com o título de um livro de divulgação científica sobre vírus que teve bastante sucesso nos Estados Unidos. No meio da crise do coronavírus, em que os Estados Unidos são o país com mais mortes no mundo, parecia apropriado que, como outros, Dylan tivesse gravado uma canção inspirada neste momento. No entanto, Dylan não é como os outros e costuma ficar na margem oposta em que se encontra o mundo, distante do que todos esperam dele, mesmo os admiradores mais fanáticos.

Não há nenhum detalhe divulgado sobre a nova música, a segunda em menos de um mês, mas este Dylan sombrio, com recursos vocais justos, corresponde ao dos últimos anos. Sóbria, com pouca instrumentação —da qual se distingue uma steel-guitar e uma harpa— e com o autor recitando mais do que cantando, I Contain Multitudes dá prosseguimento ao excesso obscuro do Dylan da última fase, a mesma que levou o entusiástico compositor do Great American Songbook a um terreno personalíssimo de instrumentação minimalista. Conhecida como a fase Sinatra, por suas versões das canções na voz de Frank Sinatra, tem sido um período em que se valeu dos padrões do jazz e do swing, mais além do cantado por A Voz, e os despojou de seus metais eufóricos para obscurecê-los em uma atmosfera dominada por steel-guitars, tímidas cordas acústicas e pianos fantasmagóricos.

Esse eco paira sobre I Contain Multitudes, como fez também em Murder Most Foul. Ambas as canções poderiam fazer parte das mesmas sessões de gravação, antecipando o que seria um novo álbum, o primeiro com composições próprias nos últimos oito anos desde Tempest e o seguinte depois de Triplicat, de 2017, onde apresentava versões de 30 clássicos norte-americanos. Nem a gravadora dele, a Sony, nem as redes sociais do músico informaram algo sobre isso. O músico costumava reservar datas de gravação em Los Angeles e, no meio de seu Never Ending Tour tirava alguns dias para gravar. Agora, não se sabe se seguiu esse método para estas novas músicas, como também se desconhece se haverá um álbum.

Com Dylan sempre convém ler nas entrelinhas. Sempre misterioso e alérgico à imprensa, o Prêmio Nobel de Literatura fala pela música e nela dá pistas. Embora possa estar preparando um álbum, há também algo mais: prestes a completar 79 anos (em 24 de maio), poderia estar preparando a própria elegia, ainda mais depois de lançar Murder Most Foul, uma narração que desencadeia todo tipo de reflexões a partir do assassinato de John F. Kennedy e que é uma epopeia de 17 minutos do tempo que lhe coube viver como figura essencial dos anos sessenta.

I Contain Multitudes dura 4 minutos e 38 segundos e faz referência no título a um dos versos mais célebres de Walt Whitman. “Eu contenho multidões” incluído em Canção de Mim Mesmo, um dos poemas de Folhas de Relva. De fato, um dos versos da nova canção diz: “Tenho multidões ... sou um homem de contradições / Sou um homem de muitos estados de ânimo”. Não é por acaso, portanto, que Dylan divulgou a canção com uma foto de si mesmo, talvez do final da década de 1980.

Longe da ambição narrativa de Murder Most Foul, esta nova canção também parece conter elementos autobiográficos, a começar por seus primeiros versos, nos quais Dylan continua a se apresentar como um ser descrente do mundo, alheio ao ambiente a seu redor, mas brincando com as referências literárias que Walt Whitman usou: “Hoje, amanhã e ontem também / As flores estão morrendo como todas as coisas”. Prossegue com evidentes referências a Edgar Allan Poe e seu conto O Barril de Amontillado: “Tenho um coração revelador / Como o sr. Poe / Tenho esqueletos na parede / De pessoas que você conhece”. E também cita William Blake e sua Canções da Inocência e da Experiência: “Estou indo direto aonde todas as coisas perdidas se encontram de novo / Cantei todas as músicas da experiência, como William Blake / Não tenho que pedir desculpas por isso”. Mescla grandes poetas da história com outros acenos à cultura popular, como quando cita os Rolling Stones, rimando-os com Indiana Jones.

São versos bem menos inspirados em comparação com o poder narrativo de Murder Most Foul, mas mesmo neles se percebe uma aspiração humanística e referências autobiográficas que apontam para Dylan: “Cadillac vermelho e bigode preto / Anéis nos meus dedos que ainda brilham e lampejam / Diga-me, o que vem a seguir? / O que faremos? ” Ambas as referências versam sobre Red Cadillac and A Black Moustache, do músico de rockabilly Warren Smith, uma versão feita pelo próprio Dylan e que o expõe como um músico sempre na estrada; e o outro verso é um aceno a Ring Them Bells, uma canção dele mesmo que fala sobre o bem e o mal, pertencente ao álbum Oh Mercy, de 1989, época de quando, precisamente, parece ser a foto com a qual foi divulgada I Contain Multitudes.

Dylan canta com versos construídos como Walt Whitman em Canção de Mim Mesmo, como este: “Eu me deleito com todos os jovens”. Talvez seja uma referência a All the Young Dudes, a música de David Bowie que se tornou hino com a banda Mott the Hoople. Uma canção da qual o próprio Bowie disse que não era uma celebração da juventude, mas, como em Five Years, de Ziggy Stardust, os rapazes enviando uma mensagem de que a Terra estava chegando ao fim. Talvez o próprio final de Dylan, que canta em uma estrofe que “vai direto até o fim”. Talvez a Terra como ele mesmo a conheceu, quando morre uma geração inteira de músicos importantes na construção da cultura popular, entre eles David Bowie.

Com mais ou menos inspiração, Dylan veste a máscara humanística de Walt Whitman em I Contain Multitudes. Ao se relacionar esta canção com Murder Most Foul se poderia ver como o músico estaria compondo sua própria elegia, sua própria Folhas de Relva. O livro Folhas de Relva era um grande relato em que poemas se conectavam uns com os outros, incluindo Oh, Capitão! Meu Capitão! a elegia ao assassinado presidente Abraham Lincoln. Trazendo isso ao seu tempo, Dylan já a teria composto com Murder Most Foul, dedicada ao assassinato de John. F. Kennedy.

A escritora norte-americana Gertrude Stein disse que Folhas de Relva era “uma autobiografia de todo o mundo”, uma epopeia norte-americana e da vida, íntima e sonhada, que ressoava cheia de realidade e promessa. Com suas duas novas músicas, Dylan poderia estar escrevendo a própria autobiografia de sua perspectiva de narrador do século XX, ao qual pertence como um elemento-chave da história dos Estados Unidos, como Whitman corresponde ao século XIX.

Se, como Harold Bloom escreveu em O Cânone Ocidental, a originalidade de Walt Whitman “tem menos a ver com seu verso supostamente livre do que com sua inventividade mitológica e domínio das figuras retóricas”, no caso de Dylan suas figuras retóricas nestas duas canções estão associadas ao século XX, e sua inventividade mitológica, como seu vocabulário, gira em torno da música popular e de seus heróis pessoais, muitos, mais de 70, citados em Murder Most Foul, mas também agora em I Contain Multitudes.

Parece que Dylan, no outono de sua vida, interpreta o poeta do Eu e do Nós, como fez o Whitman mais velho. Em sua reta final, ele aplica como o autor de Folhas de Relva uma filosofia da vida e da humanidade por meio de dois temas que, talvez, antecipem um álbum conectando músicas como poemas. Ou talvez não. Simplesmente são duas canções.

Porque se há algo indubitável é que, se Dylan tivesse que falar de Murder Most Foul, diria que é só uma canção de 17 minutos e que, se I Contain Multitudes cita um verso de Whitman, é só por acaso. A última coisa que faria é dizer o que muitos estão esperando que diga. Porque, para o bem e para o mal, Dylan só responde a si mesmo. Ou, em suas próprias palavras, sua música “é só um diálogo comigo mesmo”.

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