Evitar o ciúme (e não estragar o Carnaval)
Trecho do livro ‘Ética do amor livre’, da editora Elefante, mapeia a emoção e adverte: “A monogamia não é a cura para o ciúme”
Para muitos, o maior obstáculo para o amor livre é a emoção a que chamamos ciúme. Ciúme nos faz sentir péssimos, a ponto de grande parte da humanidade percorrer longas distâncias para evitá-lo. Nós, no entanto, acreditamos que a maioria das pessoas não questiona de maneira alguma a invencibilidade destrutiva do ciúme e atribui a ele muito mais poder do que merece. Depois de muitos anos desfrutando de liberdade afetiva e sendo bem-sucedidas em lidar com esse sentimento, tendemos a esquecer que vivemos numa sociedade que costuma aceitar o divórcio e, em casos mais extremos, até o assassinato do parceiro sexualmente curioso que cometeu o crime inconcebível de nos deixar com ciúme.
Gostaríamos de salientar que monogamia não é a cura para o ciúme. Todos já passamos pela experiência de ter sentido ciúme incontrolável, seja do trabalho que mantém o parceiro distante ou distraído, da decisão do amante de navegar pela Internet em vez de viajar pelo nosso corpo, ou do futebol de segunda (terça, quarta, quinta, sexta, sábado, domingo) à noite. Ciúme não é exclusividade de quem escolhe estar com muitos parceiros — é um sentimento com o qual todos temos que lidar.
Muitos acreditam que a territorialidade sexual faz parte natural da evolução individual e social. Teorias mais recentes sugerem que esse conceito surgiu há uns 8.000 anos, quando nossos ancestrais passaram de caçadores e coletores nômades a agricultores camponeses sedentários, dando muito mais importância ao controle de longo prazo da terra, da família e de todos os meios de produção. Se você acredita que o ciúme é natural e não uma construção social, fica fácil usá-lo como justificativa para enlouquecer a si mesmo e aos outros, e deixar de ser um ser humano são, responsável e ético.
Para as autoras, não importa se o ciúme deriva da natureza, da criação ou de ambos. Sabemos por experiência própria que podemos transformá-lo.
Nunca vamos cansar de nos perguntar. O que é ciúme para você? Será que o ciúme realmente existe e é o que pensamos ser? Quando escolhemos confrontá-lo, ao invés de fugir dele, vemos com mais clareza o que o ciúme significa para cada um de nós. Ciúme não é um sentimento único. Pode surgir como dor ou raiva, ódio ou autodepreciação. É uma palavra abrangente que inclui uma ampla gama de emoções que sentimos quando nossos parceiros se conectam sexualmente com outra pessoa.
Ciúme pode ser uma expressão de insegurança, medo de rejeição, receio de abandono, de sentir-se excluído, inadequado, horrível, de não ser uma pessoa boa o suficiente. Seu ciúme pode estar baseado em territorialidade, competitividade ou algum outro sentimento que está gritando para ser ouvido sob o tumulto causado na sua cabeça. Às vezes, pode aparecer como uma fúria escandalosamente cega — e, por ser cega, é muito complicado se dar conta do que está acontecendo.
Muitos encontram dentro de si tipos de ciúmes que são, na verdade, bem fáceis de lidar — dúvidas insistentes, nervosismo em relação ao desempenho sexual ou à própria imagem corporal. Outros são sugados por um turbilhão de medo ou dor, difícil até mesmo de ser encarado, muito menos de ser identificado com outros sentimentos como medo de abandono, perda ou rejeição. Por que às vezes nos sentimos assim?
O ciúme é muitas vezes a máscara usada pelo conflito interno mais difícil que você tem no momento, um conflito que grita para ser resolvido e que você nem se dá conta que existe. Por estar arraigado lá no fundo, é incrivelmente difícil identificar quando surge no horizonte: nós nos torcemos, contorcemos e retorcemos tentando não o sentir. É nesses momentos que nossas emoções têm mais possibilidade de causar dor — quando você acredita que precisa evitá-las a qualquer custo.
Uma maneira de não sentir um sentimento é projetá-lo em seu parceiro. Projeção é uma defesa psicológica pela qual se tenta remover de si um sentimento doloroso projetando-o em outra pessoa, como se ela fosse uma tela para seus medos e fantasias, e não um ser humano. Pode ser que essa seja a única definição real de ciúme: é a experiência de projetar os sentimentos desconfortáveis no parceiro.
Mas temos boas notícias. Se você se identifica com algum ponto dessa descrição, uma parte de você decidiu que é forte o suficiente para reconhecer a emoção implícita no ciúme. Use seu ciúme como uma placa que diz: “Trabalhe esse sentimento!”. Você pode se beneficiar dessa oportunidade se fizer o trabalho que está à sua frente: cicatrize velhas feridas, abra novas possibilidades, conquiste saúde, liberte-se do medo… e, em algum momento, quase como um bônus surpresa, você também conseguirá alcançar sua liberdade sexual.
Às vezes, o que identificamos como ciúme é, na verdade, outra coisa. Pense nos detalhes de como funciona com você. O que mais incomoda? Será que você não quer que seu parceiro faça certas coisas com outra pessoa, ou será que quer que ele as faça com você? Ciúme pode ser, na verdade, inveja, e inveja é fácil de solucionar: por que não conversar com seu amante e fazer as coisas das quais está sentindo falta?
Ciúme pode estar enraizado em sentimentos de tristeza e perda, que podem ser mais difíceis de interpretar. Na nossa cultura, aprendemos que, quando nosso parceiro faz sexo com outra pessoa, perdemos algo. Não queremos parecer idiotas, mas essa lógica nos confunde. Quando nossos parceiros chegam em casa depois de um encontro erótico, muitas vezes estão animados, excitados e têm novas ideias que gostariam de experimentar em casa. Nós não conseguimos enxergar nenhuma perda numa situação dessas.
Será que essa sensação de perda que você sente não é a perda de um ideal, de uma imagem que você mantém em sua cabeça sobre o que é um relacionamento perfeito? Lembre-se de que todos os relacionamentos mudam com o tempo: as necessidades e os desejos das pessoas mudam de acordo com a idade e as circunstâncias, e os relacionamentos de longo prazo mais bem-sucedidos são os que têm flexibilidade suficiente para se redefinirem com o passar dos anos.
De vez em quando, nosso desconforto significa que percebemos num nível intuitivo que nosso parceiro está se afastando de nós. Isso acontece. Pensar que em todo lugar há pessoas supostamente monogâmicas que muitas vezes deixam um parceiro para se unir a outro alguém não serve de muito consolo quando acontece com você.
Vimos um amigo passar por uma tristeza e um sentimento de perda profundos quando percebeu que o amante de sua parceira estava tentando fugir com ela. Neste caso, a dor colocou em evidência a desonestidade e a manipulação por parte da terceira pessoa, e proporcionou à parceira força para se separar do amante externo e encontrar outros amantes que tivessem mais respeito por seu relacionamento primário. Por outro lado, essa história poderia facilmente ter culminado em término.
O ciúme também pode estar associado a sentimentos de competitividade e de querer ser o número um. Há uma razão pela qual não há olimpíadas de sexo: conquistas sexuais não são mensuráveis. Não podemos nos classificar num tipo de escala hierárquica do mais ao menos desejável, ou de quem fode melhor. Se você descobre algo que gostaria de acrescentar ao seu repertório, certamente pode aprender a fazê-lo sem desperdiçar tempo destruindo a si mesmo por não ter sabido disso antes.
O medo de ser sexualmente incompetente pode se acumular junto a feridas muito profundas e secretas. Mas garantimos que, no final das contas, quando você conseguir estabelecer o estilo de vida dos seus sonhos, terá familiaridade com tantas maneiras de expressar sua sexualidade que não precisará mais se perguntar como sua sexualidade se compara à de outra pessoa: você saberá por experiência própria. Grandes amantes não nascem, se criam. Você pode aprender com seus amantes, os amantes de seus amantes e os amantes dos amantes de seus amantes a ser a potência sexual que gostaria de ser.
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Capítulo ‘Mapas para atravessar o ciúme’ do livro ‘Ética do amor livre’, da editora Elefante. A tradução é de Christiane Kokubo.
Sobre as autoras:
Dossie Easton é uma terapeuta especializada em sexualidades alternativas, relacionamentos não tradicionais e tratamento para sobreviventes de trauma num consultório particular em São Francisco, na Califórnia. Foi em 1969, quando sua filha era recém-nascida, que ela se comprometeu com um estilo de vida sexualmente aberto. Realizou sua primeira oficina sobre como desaprender a ter ciúmes em 1973. Passou cerca de metade de sua vida adulta solteira, ou quase isso, com amantes, famílias de pessoas com quem dividia um teto e outras pessoas de seu círculo íntimo. Hoje vive nas montanhas ao norte de São Francisco.
Janet W. Hardy foi uma jovem promíscua durante a faculdade, mas depois, por mais de uma década, ensaiou um casamento tradicional heterossexual e monogâmico. Desde o fim desse casamento, a monogamia deixou de ser uma opção. Mesmo que a maioria das pessoas a considerem bissexual, ela se vê como alguém que transgride gêneros e não consegue entender como a orientação sexual deve funcionar se algumas vezes se é homem, outras vezes, mulher. É casada com uma pessoa que é biologicamente homem mas cujo gênero é tão flexível quanto o dela, o que é menos complicado do que parece. Ela ganha a vida como escritora, editora e professora, e vive em Eugene, Oregon.
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